Salma Soria lança conto “Ai dos meus xises, vixe!”

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Salma nasceu em São Gonçalo (RJ) em 1986. Estilista com mais de vinte anos de mercado, sentia falta de livros ficcionais que falassem de moda sem os rótulos de frivolidade mágica ou do glamour ganância. Publicou os livros de contos “Vestindo a roupa ouvindo a máquina” e “Muitas roupas aqui” ambos pela editora Penalux.

As relações do universo da roupa, cultura de consumo e o corpo feminino são temas centrais de sua ficção literária.

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O que é necessário para uma criança na escola? Saber se virar. E era isso que fazia. Bimestralmente exercia as obrigações estudantis.  Automatizava os conteúdos. Enrolava um pedaço de papel embaixo da carteira, transcrevia umas fórmulas na borracha ou palma da mão. Cola? Não! Guia para dúvidas, caso necessitasse.

A questão dos números era justamente um problema. Não comportavam no espaço da cola, não dava para escrever uma única palavra que criasse livre associação como “fotossíntese” ou “Guerra do Paraguai”.  Era um tal de números e símbolos que mais tarde se tornariam “X”.

Hã? Qual era o valor de “x”?  Coisa que até hoje não me atrevo: Xis. Ai dos meus xises, vixe! Derreteram por aí, mistério móbile. Todo aluno inclinado para humanas assassinou sem grandes cuidados os xises, ípsilones, e zês matemáticos.

Era um sofrimento.  Me sentia cota de ser humano menor por conta de uma habilidade que nunca tive e jamais terei: manipular as ciências exatas.

Nas épocas de franca ansiedade na humanidade dos números, garantia meu lugar atrás da Lívia, menina com um ar responsável e crânio matemático. Quando a prova chegava não tinha jeito. Às vezes, Lívia percebia meu dramático esforço em tentar enxergar o que ela colocava no papel. Eu corria para sentar na dura cadeira de madeira, atrás dela, como uma plateia confiante em seu espetáculo. Precisava acessar a dimensão da ideia da Lívia. Esperava ela abaixar a nuca para saber o que anotava. Não estava lhe roubando nenhuma ideia. Lhe roubava a decoreba, inquérito das decorações de números. Nunca me senti culpada. Sabia que não estava roubando a criação de alguém e sim, códigos que davam acesso a aprovação escolar. Aprendi a disfarçar quando esticava o pescoço para saber o que a Lívia colocava no papel matemático, quais eram os graus dos números e a temperatura certa que deveria descolar do lápis dela e cair, sem pensar, sob o meu papel. Ela sabia que eu sabia que estava colando dela, mas nunca aparentou estar brava comigo, tampouco tocava no assunto.

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O tempo total de toda a cola não passava de três a cinco minutos. Esperava a Lívia sair primeiro, num tácito acordo de gentileza. Ela podia usufruir do maior bife da casa: ser a primeira a sair da prova. Lívia merecia.

Após a saída dela, cronometrava outros quatro minutos e me levantava. Nesse interim, passava a mão no papel, olhava com certa distância todos aqueles números perfilados, fingindo entender e pensando como aquilo estava fora do meu mundo, de como seria minha vida sem saber dos números. Era um pouco desesperador, devo confessar. Graças a ela, garantia boas notas em matemática.

Com o tempo, Lívia foi aumentando de tamanho e sua nuca virava uma parede distante. Não dava mais para contar com ela. Foi aí que precisei desenvolver técnicas sofisticadas. Usei muitas coisas: régua, adesivos embaixo da camisa, uso de bolsa transparente sob o colo com explicações matemáticas inteiras. Era divertido inventar jeitos não ortodoxos de seguir a norma.

Aos colegas, não disfarçava. Para a professora, tomava ligeiro cuidado. Talvez não desconfiasse de mim. Nunca fui pega e também nunca vi ninguém ser pego nessa missão. Talvez os professores soubessem do cinismo que certos alunos encaravam ao replicar conteúdos inteiros na pulsão fria sem grandes estímulos enquanto todo mundo esperava o sobressalto da sirene quebrar o contrato das reproduções automáticas.

Quando o intervalo acontecia era uma alegria. Livres, livres para sermos quem quiséssemos! Corria para a biblioteca e me aquecia nas palavras inventadas.

Graças a ação da cola pude aprender a encenar diante de responsabilidades que não gostaria de encarar, mas que aconteciam, tipo prova de matemática ou qualquer outra aplicação no campo das exatas. O que não quer dizer que hoje enceno o tempo inteiro (tirando as interações com pessoas que não aprecio muito). Não quer dizer que minha ação no mundo não seja real. Estou interessada na reação humana. E ela não cabe num número. E quando preciso de números que expliquem o que ocorrem, eles me mostram menos do outro e mais das burocracias que preciso colar para passar sem chamar a atenção. Dessa vez, sem a certeza de que Lívia está fazendo as escolhas certas.

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