Quarentena Onírica – Um Conto de Alexandra Vieira de Almeida

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Alexandra Vieira de Almeida é poeta, contista, cronista, resenhista e ensaísta. Tem Doutorado em Literatura Comparada (UERJ). Atualmente é professora da Secretaria de Estado de Educação (RJ) e tutora de ensino superior a distância (UFF). Tem seis livros de poesia, sendo o mais recente A negra cor das palavras (Penalux, 2019). Seus poemas foram publicados nos importantes meios de comunicação: Revista Brasileira, da Academia Brasileira de Letras, Jornal Rascunho e Suplemento Literário de Minas Gerais. Publica constantemente em antologias, revistas, jornais e alternativos por todo Brasil e também no exterior. Tem poemas ver- tidos para vários idiomas.


Quarentena Onírica

E não podemos admitir que se impeça o livre desenvolvimento de um delírio, tão legítimo e lógico como qualquer outra série de ideias e atos humanos.

Antonin Artaud

A quarentena me fez tanto mais leitor quanto escritor. Já tinha lançado vários livros em vários gêneros e carregava uma bagagem razoável de leitura, mas não o suficiente para me tornar um escritor apresentável. Era um autor mediano, que precisava do burilamento estético. Comecei a devorar os autores consagrados que já morreram. O diálogo com os mortos parecia o ambiente propício para esta quarentena, que já nos assaltava com uma avalanche de pessoas mortas. A movência do mundo girava por um ponteiro mórbido que costurava as horas não pelo artefato do milagre, mas da catástrofe. As horas apocalípticas nos dire- cionavam para o fim da história, mas a minha só es- tava começando com a leitura de autores. Mas essa espécie de mortos era especial. Não leria os exímios estrangeiros, mas somente os nacionais. Queria um produto para minhas elaborações especificamente nacional. Made in Brazil.

A minha primeira visitação foi com a leitura de Hilda Hilst. Quanta beleza nos seus poemas e contos eróticos, que revelavam uma linguagem cifrada e magnífica! O primeiro livro que comprei dela pela internet foi Júbilo, memória, noviciado da paixão, das obras dela, a mais vendida na Feira Literária Internacional de Paraty. Fiquei encantado com os percursos da leitura que enveredava pelos nomes canônicos de nossa literatura. Comecei a esboçar alguns poemas eróticos, ou seja, a leitura levaria à escrita e vice-versa. Mas não estava conseguindo ter a inspiração necessária. De repente, após trabalho espinhoso e difícil, comecei a ter um sono incomum. Uma espécie de sono jamais imaginado por mim, que, devido à literatura, era um insone contumaz. Como disse Kafka, num de seus contos, se não fossem as noites de insônia, ele jamais escreveria. A insônia era minha companheira amorosa, minha doce princesa, a acalentar meus escritos.

Nos sonhos do meu sono marmóreo e mórbido, co- mecei uma nova aventura literária. Comecei a visi- tar os mortos, os autores consagrados, que me da- vam ideias sobre os livros. Num deles, Hilda Hilst, me embalava com seu cântico erótico, que dizia, de forma surrealista: “Os pássaros ardentes no bolso do pijama atingiam o orgasmo múltiplo do vermelho em dor”. Tomei um susto e, após acordar, estava suan- do e com febre. Fui tomado pelo desespero, achando que aquelas eram espécies de sintomas da Covid-19. Pensei que, com a visita aos mortos, iria estar junto deles em breve. Não imaginava que aquele era o puro delírio do escritor, o sonho surrealista que me levaria rumo ao caminho do êxito da escrita.

O meu primeiro sonho surrealista deu-me a ideia da primeira descrição em prosa poética, um tipo de gênero a que não estava tão acostumado: “O céu plúmbeo chamava para o cântico da chuva. As lágrimas da escrita caíam como gotas negras de escárnio. O papel afundava naquelas águas taciturnas, um navio em pleno mar bravio. A moça, com sorriso de névoa, adornava meu corpo com prazeres indescritíveis. Seu sexo afigurava-se como uma concha nas águas profundas do novo. Meu mar acercava-se de sua pele febril e erótica. Nossos corpos nus afundavam até o abismo mais fundo. Era hora de acordar para o momento do desejo”. Assim, minha criatividade aflorou, após minha conversa com Hilda, a mestra da escrita. Não sabia que conseguiria escrever de forma tão única e singular. Estava em êxtase estético e procurava fugir dos noticiários sobre as mortes por Corona vírus. Queria fugir para uma quarentena onírica, plena em delírios e prazeres.

Não sentia tanta fome, comia o necessário naquela ceia de mortos. Pães, cereais, frutas, chá e leite completavam minha alimentação frugal, tirando o gosto excessivo da gordura. Queria me sentir mais leve, para que o sonho me sobrecarregasse com suas mãos esqueléticas. O sono vinha a qualquer hora, podia ser de manhã, à tarde ou à noite. Na manhã de segunda- feira, iniciei meu sono exótico, porém necessário ao meu ato criativo. Era como se o delírio das horas fosse o motor de minha imaginação escrita. Sem ele, eu era um nada, um zero à esquerda. No meu próximo sonho, tive um deslumbramento maravilhoso com dois poetas que estava lendo depois de mais uma compra relâmpago pela internet. Em todas as com- pras que fazia online, optava pelo envio por sedex para agilizar minha propensão aos delírios.

No novo sonho, uma disputa. Num boteco onírico, estavam presentes os grandes poetas Murilo Men- des e Jorge de Lima. Parecia que não conversavam amigavelmente. Estavam em meio a uma querela li- terária. Murilo Mendes dizia: “– Vou te desafiar. Va- mos ver quem faz os versos mais belos”. E Jorge de Lima, prontamente, respondia: “– Aceito o desafio e vou te matar literariamente”. Murilo Mendes verse- jou: “Na queda da torre, anjos fomentam a despedida da loucura. Quero trucidar as horas com o veneno da poesia”. Ao que Jorge de Lima disparou: “A noite esquálida dá a vestimenta para as horas. No mapa do desespero, encontro a fome desalojando os des- validos. Quanta graça numa montanha irisada pelo arco-íris da esperança”. Mas, para insatisfação mi- nha, não fiquei sabendo qual foi o vencedor. Acho que caberia ao sonhador explorar a opção mais dese- jada. No meio do bar surrealista, uma nuvem gigante adentrou o recinto, levando os dois poetas para o céu imaculado da literatura.

Ao acordar, escuto o som da vizinha batendo na minha porta. Direciono-me à porta para abri-la. Após isso, ela reclama: “– Há vários dias que bato à sua porta para lhe dizer que uma das moradoras do prédio faleceu de Covid-19. Nossa atenção tem de ser redobrada. Precisamos nos proteger. Todo cuidado é pouco”. Nisso, um desespero imenso me assola como o barulho dos oceanos a me levar para o mar da morte. Eu fecho a porta bruscamente, com medo da doença invisível aos olhos, mas visível para minha alma moribunda. O que só quero é sonhar e escrever. O mundo externo não me atrai. Prometo a mim mesmo que não abrirei mais portas para vizinhos enquanto durar a pandemia. Só irei à caixa de correspondências pegar meus livros e cartas. Não quero contato com humanos vivos, só com os mortos. Minha visão mórbida é mais atrativa do que aqueles seres que só destilam e anunciam desgraças.

Sento-me à mesa para escrever. Esboço alguns versos e, no final, saem estes, após o sonho que tive com os príncipes da poesia brasileira: “O vale para as sombras se enaltece com o sol dos meus versos extáticos. Dormir é meu desejo mais esguio. Preciso da chama da criação para incendiar meus dias invernais”. Estava exausto. Meus sonhos, mesclados à criação, me davam um cansaço colossal, como as montanhas duplas da sorte no seu peso enigmático. Precisava descansar sem sonhos para que eu tivesse uma trégua e um repouso necessários. Mas, toda vez que dormia, novos sonhos com autores se tornavam realidade. Já tinham se passado vários dias desde o início dos meus sonhos com os escritores, desde Drummond a Cecília Meireles. Então, decidi tomar uma atitude inusitada. Encher-me-ia de comi- da, para ver se conseguiria ter o efeito contrário e ter os sonos sem sonhos. Após um banquete de ali- mentos gordurosos e com carboidratos, com bebidas alcoólicas e refrigerantes, não consegui realizar meu intento. Parece que os sonos com sonhos aderiam à minha pele e minha epiderme era propensa aos alucinatórios frascos da literatura mais plena. Os voos pela imaginação eram incessantes, não se quebravam com nenhuma estratégia ou poção mágica.

Interessante que ainda não tinha escrito um conto, um início de novela ou romance. A poesia dominava meus sonhos. Decidi, então, comprar mais livros de prosadores. Comprei novamente pela internet mais livros: Guimarães Rosa, Machado de Assis e Clarice Lispector. Tirei-lhes o sumo até os ossos. Li e reli. Tentei reescrevê-los à minha maneira, mas não con- seguia colocar nada no papel. O estado de impotên- cia preponderava. Parece que, por estranha mágica que não entendia totalmente, só conquistava o dom da escrita pela viagem às terras inóspitas dos sonhos. Eles eram minhas musas inspiradoras. Na noite de uma sexta-feira, o sono começou a adentrar os meus poros. No meio dele, sonho com ninguém menos que Clarice Lispector. Ela trazia na boca uma maçã e en- rolada nela um papel com algumas frases de um con- to escrito no mundo dos mortos. Uma obra póstuma só para quem quisesse se inserir no mundo onírico.

“Teresa entrou naquele quarto esvaziado de sentido. Queria comer a maçã do desespero e não uma barata nojenta que embrulhasse seu estômago. A maçã tinha o gosto da morte, mas a levava para um lugar desconhecido, o mundo dos mortos. Na morte, tudo era válido como nos sonhos. A lógica era outra e diferente do estado esquemático da realidade. Teresa conversava com seus familiares falecidos e se emocionava novamente ao refletir sua face no espelho. A maçã era sua vitória perante a vida rotineira e exausta. Ela abria os olhos para um universo encantado em que podia estar além da existência.” Após algumas horas de sono, acordo e sou tomado por um calafrio tremendo, como se a morte espetasse sua agulha fina e lançasse no meu corpo o vermelho da solidão, a solidão de se estar com os mortos e não com os vivos. Essa imagem tétrica me avassalou os pensamentos e descortinou para mim um universo de possibilidades jamais imaginadas.

Meu conto se chamaria “O barco da morte” e come- çava assim: “No barco da morte, não era a tendência da cor que assaltava os seres. Duas pessoas corriam no rio sedento da vida. Buscavam o paraíso perdido. Mas só poderiam encontrá-lo, desafiando a morte. A nulidade da cor era o encontro com o nada da mórbi- da experiência de navegar no rio do infinito. O barco corria célere. Desafiava os relógios e fiava o eterno destino da arte. Seria pela arte que os dois seres des- construiriam a face da morte”. Ao olhar mais de per- to o texto, fico arrepiado com o que vejo, um sonho acordado. Em alto-relevo, vejo um barco saindo do papel e nele encaro minha própria face conversando com a morte e sua foice de medo. Começo a gritar desesperadamente. Seria uma alucinação ou o dom da criação? Aquela imagem se despregando do pa- pel seria meu medo diante da pandemia? Vou até a cozinha e pego um copo de água gelado. Tomo água devagar e tento respirar com mais calma. O sonho estava se revelando na realidade e o que antes dese- java desesperadamente para meu ato criativo, passo a repudiar veementemente.

Minha esperança era agora com a vida. Passo a temer a morte e a escrita. Decidi não comprar mais livros na internet e nem escrever. Queria desafiar o sono e não dormir com tanta frequência. Procuro na internet psiquiatras que atendessem remotamente. Encontro vários e, por fim, decido-me por um, que parece ser excelente pelos comentários dos clientes. Doutor Almir Barata. Insiro seu número no WhatsApp e aguar- do retorno. Após o anúncio do preço e a forma de pagar, realizo o depósito e espero algumas horas pela consulta. Numa conversa virtual em vídeo, eu me apresento: “– Olá, Doutor Almir, sou Teodoro, escritor. Boa tarde, tudo bem? Ao que o Doutor responde: “– Tudo bem, muito grato, em que posso lhe ajudar? Explique-me seus problemas”. Depois de uma con- versa de mais ou menos duas horas, o Doutor Almir chega a uma primeira hipótese. Eu tinha desenvolvi- do uma psicose, devido ao medo da nova doença, que estava me deixando desesperado e sem norte. Aquela alucinação com o barco teria sido o ápice de meus delírios. Receitou-me risperidona, 3mg de manhã e 3mg à noite. Enviou-me uma receita digital que poderia ser utilizada em uma farmácia por ser remédio controlado. Tive que desafiar meu medo e ir até a rua comprar o medicamento. Teria que me relacionar com pessoas e este seria meu maior desespero. Encontrar com pessoas fora de casa aumentaria minha tensão.

Tinha algumas máscaras guardadas após a minha úl- tima ida à rua fazia dois meses. Coloquei a máscara devidamente e levei um pote de álcool gel na bolsa que também estava guardado logo no início da pan- demia e que quase não cheguei a usar. Minha aven- tura literária tinha me enlouquecido, pensei. Mas, ao mesmo tempo, refleti. Seria um delírio, uma alu- cinação, ou estaria me comunicando com o mundo dos mortos? Sou tomado pela dúvida e penso em não comprar o remédio. Será que não seria mais válida a criação do que a interrupção dela por um medicamen- to que afetaria minha mente e me traria um estado em que ficaria dopado? Queria fugir desses pensamentos e busquei me controlar, apesar do nervosismo. Tomei coragem e abri a porta para ir à rua. Perto do jantar já estava de volta à casa com várias caixas do psicotró- pico que engoliria, apesar de minha resistência.

Após vários dias, sou tomado por sonos tranquilos sem delírios ou visitação dos mortos. Nos sonhos, coisas habituais e sem muita importância. Deixo o papel por vários dias e não me ouso a ler e escrever mais durante a quarentena. Acesso a internet e com- pro pacotes de planos na Netflix e na Prime video. Assisto a alguns seriados e filmes para me distrair, mas o papel na mesa me atrai como um ímã. Sou energizado por suas atrações nervosas. Sento-me à mesa e tento escrever algo. Saem estes versos que agora reproduzo longe dos esquemas dos sonhos: “A claridade da manhã me atira para a glória do mundo. Os pássaros com seus cantos de dor admiram o céu infinito dos poetas. Era a hora mais pacífica em que a utopia por dias melhores era a chave-mestra para o encanto das borboletas”. Pensei em esboçar um con- to e eis o que surge: “Miguel ouvia o som cristalino do rio dentro de seu ser. Era a cura que se inseria no seu corpo. Os amanhãs agora seriam acordados pelo sol da esperança. O sol crestava os corpos e os incendiava no abrasamento da vida. A chuva cai após dias de aridez. Os sonhos dos homens não são mais obscuros, mas adquirem a cor esmeraldina da expe- riência mais extasiante”.

Notei que meus escritos estavam mais delicados e mais esperançosos, sem a agressividade que o medo aguçava em mim. Mas não tinha critério para saber se isso era um bom sinal. Parecia-me que a morbidez da escrita era mais propícia à criação e que minha verve estava mais morna com a administração do medicamento. Não queria mostrar meus escritos para ninguém, nem para meus amigos escritores. Estava com medo da crítica. Preferi me esconder na minha solidão literária. Precisava me recompor e decidi comprar mais livros pela internet, agora de autores vivos, pois, com eles, pensei em reverter a situação do peso e da solidez da morte. Compro vários livros de contos de Lygia Fagundes Telles e, após poucos dias, os recebo em minha casa. Que maravilha de escrita dessa autora magistral! Encanto-me com um conto mais em particular, “A caçada”, que me inebria por sua temática. Consigo me identificar e me ver dentro dele. As imagens da caça e do caçador me ar- repiam, levam-me a um delírio inconfundível. Con- sigo me ver dentro daquele tapete, como impregnado pelo vinho tinto dos sonhos.

Parece-me que meu desejo pelos sonhos retorna no- vamente. Tomo uma decisão difícil. E se eu deixasse os remédios de lado para conversar com os escrito- res vivos, não me deixando envolver com o mundo dos mortos, mas com o mundo inventivo dos viven- tes? Penso nisso de forma viva e presente. O viço da escrita me assalta de novo. Eu queria me arreme- dar pela teia mais rica dos escritos. Queria a criação mais fulgurante e me tornar um escritor de primeiro quilate como os autores consagrados. Nesse meio tempo de pensamentos e sentimentos confusos, sou levado pelo cântico de Morfeu. O meu sono chega logo e durmo novamente com grande ânimo, após uma dieta magra de sonhos e escrita. Mas, para meu desespero, o que estava na realidade não invade o sonho. Meu plano não tinha dado certo. Sonho com nosso poeta maior do surrealismo, Murilo Mendes. Ele diz: “– Abra a porta da solidão e converse no- vamente com os mortos. Mil janelas se abrirão e es- padas serão despejadas na sua língua. Venha para o mundo dos mortos, meu caro escritor”. Acordo com um medo relampejante, jamais sentido em toda a mi- nha vida. A morte me convida a uma visitação e não encontro refúgio nem nos remédios e nem no mundo dos vivos. Por que esta insistência em sonhar com os mortos se, até na escolha dos livros, estava mudando meu itinerário? Era um segredo de morte e não deve- ria ser revelado ao mundo dos vivos. Era um código cifrado, um hieróglifo que não poderia compreender.

Não compreendi o que estava acontecendo comi- go. Mesmo com o uso dos remédios, voltei a ter os sonhos com os escritores mortos. Resolvi procurar outro médico pela internet. Esse novo psiquiatra decidiu alterar a medicação para ver se consegui- ria algum efeito. Passaria a tomar haldol, 5mg de manhã e 5mg à noite, mas com a utilização de um outro remédio junto para que eu não tivesse alguns efeitos colaterais, como movimentos involuntários no corpo. Aceito o teste e, mais uma vez, vou à rua com um frio na espinha. Depois de muitos dias de administração do remédio, parecia-me que estava tudo controlado. Sonos com sonhos leves sem ser acometido pelo universo dos mortos. Mas o estranho era que o desejo em escrever não parava. Decidi não ler mais livros, nem de autores vivos, nem mortos. Pensei em me enveredar somente pelo terreno da escrita, já que tinha lido tantos livros durante a quarentena.

Escrevi uma espécie de crônica, cujo título era: “O nosso quarto particular e o que há além? – Uma crônica espiritual para os tempos contemporâneos”. Transcrevo aqui o texto na íntegra. “O nosso quar- to particular no âmbito do transcendente se coaduna com nossa consciência. Haveria um aposento para cada religião? Na Bíblia, está dito que há muitas mo- radas. O habitar também é um processo de escolha e livre-arbítrio. Se temos nossa consciência habitada pelas sombras, encurtamos o tamanho do sol e mer- gulhamos numa caverna inabitada, como na morte cadavérica, percorrendo nossa própria escuridão. Se Platão disse que o sol era a claridade da verda- de original, se estamos pesados, é claro que não en- contraremos leveza em nosso quarto que nem parece particular, mas de hóspedes, emprestado por alguns momentos de errância. Erráticos, os habitantes das sombras ora perambulam na caverna escura da ig- norância ora são tragados pela matéria, pois a som- bra tem o peso da matéria. A matéria não se dilui na serenidade de uma pluma que voa pelos cantos do universo. Mas se o ser foi bom, mas não quer buscar a vacuidade, se teve um brilho do sol em seus olhos, o tamanho de seu quarto vai ser da estatura de sua re- ligião. Se foi um católico, vai encontrar seus amigos celestiais por lá, ou seja, os santos que revestiram sua pele terrena. Se foi um hinduísta, vai encontrar seus deuses por lá e todos se tornarão alegres e conver- sadores, mas dentro ainda da medida de seus pensa- mentos e sentimentos. Se foi um budista, mas ficou preso a imagens, rituais e repetições, vai se extasiar com seus ritos na consciência celeste de seu quarto particular, habitado pelo seu ser e encontrará por lá os familiares e amigos que se aproximaram da crença ou da bondade dele, ou seja, ainda estamos no plano da corporeidade, seja por pensamentos ou sentimen- tos em sua forma mais sutil.

Todas as religiões são importantes para desenvolver a bondade nos indivíduos. São necessárias para um estágio de evolução. Mas ainda não há a liberdade no terreno de uma especificidade religiosa. Para o homem transcender os campos do terrestre ou celes- te, é preciso que ele seja cósmico, não seja ligado a nenhuma religião ou crença determinada. Esses san- tos, deuses e entidades que os seres encontram nas suas moradas celestiais não são nada mais do que as projeções de sua consciência. É necessário buscar o silêncio e a vacuidade, perceber a unidade de tudo, apesar da diferença aparente. Todos esses mestres li- bertos não fundaram religiões. Eles transcenderam o corpo tanto do terreno quanto do celestial. Eles não buscam nada, não há caminho a percorrer. Esses san- tos seres, não em sua projeção da consciência huma- na, mas, em sua ultrapassagem do campo da imagem, além do bem e do mal, buscaram o Deus sem nome, o que ultrapassa a forma e o entendimento, a própria linguagem. A vacuidade é o Criador de todo universo que foge aos esquemas binários e divisores da mente.

Deus é o zero, o que não pode ser medido, inventa- do ou acorrentado pelos nomes excessivos. Na ras- pagem dos lados transbordantes, a Consciência que permeia todo o universo não se enquadra nos esque- mas da razão, é intuição em seu estado mais pleno.

A intuição quebra o limite da matéria, modifican- do suas células e fazendo do ser liberto mais sutil, do tamanho do universo e não apenas de um quarto fechado, marcado pelo tempo, pela memória e pelo degredo. A caverna se solariza, e o indivíduo sola- rizado ainda fica preso a sua própria iluminação, o liberto não fica preso nem na sombra e nem na luz, nem aqui nem lá, segue a lei que rege o universo, pois essa lei é a consciência cósmica da qual não podemos escapar, pois é nossa fonte primordial. A centelha espiritual do homem não se funde no todo, na verdade, paira no nada do vazio original. Bus- car a vacuidade, o serenar da mente leva o homem a encontrar a serenidade do zero, pois não precisa tirar nem repor nada. Encontra uma morada sem pa- redes, nem teto, nem chão. Nem mesmo é uma mo- rada, pois a vacuidade é um estado de êxtase que se parece com a falta de tonalidade, de qualquer cor ou imagem. É a entrega pura e simples da vida. Nesse estado de entrega, está o sacrifício do ego. A cruz de Cristo não indica o sofrimento, mas tão somente a morte do eu, da carne e da consciência, de qualquer pensamento ou sentimento. É a negação da sombra ou do sol. O mito solar não se equaciona aqui, pois a luz clarifica tudo, mostra a diferença entre as for- mas, entre as culturas, a dualidade. Se há sol, há sombra. O homem precisa sair da estrada que leva à Terra ou ao Céu, duas metades da laranja. Jogando as duas metades, não sobra nada e isso é que cau- sa medo no ser. A nudez instantânea do vazio e do silêncio. O homem tem essa necessidade de preen- cher o cálice. Por que não derramar o líquido tinto fora e deixar o cálice na mesa deste quarto empoei- rado? Sejamos vacuidade vibrante que não ressoa a música das esferas, das múltiplas reencarnações nos dois reinos: Terra e Céu. Vibrar no zero sem valor e sem preenchimento, no nonada de como se expres- sava Guimarães Rosa, ultrapassando os limites, os espelhamentos, as cores tentadoras, faz do ser liber- to não um iluminado por qualquer luz, seja por uma vela aqui na Terra ou por um fogo transcendente.

O motivo de estarmos aqui é nos “desombrarmos” ou desiluminarmos”. Nem luz nem sombra, nem céu nem inferno, que nos empurram em ciclos en- fastiantes da experiência. Nos libertar, eis a palavra mágica, nos desmitificar de qualquer sombra ou luz de individualidade, de ego, nos “desindividualizar” e nos tornarmos como nada, sem esperarmos castigos ou recompensas, apenas o vazio do deserto que não entulha um quarto de imagens. A não imagem nos li- berta do sonho que criamos a partir dos pensamentos e sentimentos. Portanto, a serenidade do zero é um caminho que muitos trilharão ainda até não encontrar nenhuma morada, mas ser como um sem-teto”. Ao escrever a crônica, sou devastado pelo desejo cada vez maior de escrever mais, sem parar, e começam a aparecer outros textos, como estes poemas intitu- lados “Conexão” e “A lei dos afetos”, que também transcrevo na íntegra, pois os outros versos citados anteriormente eram apenas esboços e começos, sem um desenvolvimento e uma conclusão. Acredito ago- ra que não precisarei mais visitar o reino dos mortos, pois minha criação literária estava surgindo agora sem a necessidade dos sonhos mortais.

Conexão

Hoje em dia
Todos conectados pelos fios
Tecidos pela verve virtual
A urdidura de ossos e escombros Em meio ao sentimento frágil
De seres em enigmas de embriaguez Pelas telas hipnóticas
Escutam o canto dos pássaros solitários Os voos pelas teclas da internet
Os escondem nas cavernas da antevisão
Apocalipse das horas
Que desfaz as madrugadas em seres alados Pelo encontro do sol
Tal Ícaro a ultrapassar as margens do papel Os “claros enigmas” se dedilham
Pelos encontros de outros amanhãs Que despertam os seres áridos de águas
Mas plenos em interação e extrospecção Mitos da tecnologia
Que abarcam os barcos no leite constante Das telas hipnóticas
Navegando por terras recém-descobertas
Que nos revelam a iridescência dos olhos Atávicos por terras firmes
Nas teclas em voo
De Ícaros de papel
Silenciando os barulhos do lá fora Dentro de casas de vidro
Frágeis em seus casulos Acordando todo sono adormecido
Pelos milhares de anos da humanidade
Da pré-história ao apocalipse de celulares, Notebooks e suas hecatombes
As catástrofes dos anos Não amaldiçoam o tempo A bênção das teclas
Criando milagres de fios magnéticos
A eletricidade e seu futuro
Nas mãos carcomidas e olhos “fatigados” Dos seres em procissão conexa
A reunir todas as diferenças
Numa só toada virtual
Com seus mugidos de metal e plástico
Os Ícaros sobrevoam as cidades conectadas Por fios de ouro prestes a atingir
Os sóis de uma tessitura mesma Da qual o sonho é produzido.

A lei dos afetos

A afetividade deveria
Virar lei
No dicionário adocicado Das memórias febris Longe da frieza das urbes. Os afetos apregoam
As vitórias
Pelo amor incansável Terrificando
Os cansaços
Das ruas que nadam
Em tristes poças de solidão. Os amores tecem
Um véu de beleza enigmática A assombrar
Os fantasmas do esquecimento.
A lei dos afetos Eclode
Da doçura de seres Vitimados pela queda Incessante do Paraíso Onde a escuridão consome
Os corpos em desalinho para o futuro.

Acredito que agora poderia me considerar um escritor melhor depois de tantas experiências durante a quarentena. Meu nome Teodoro Lima agora poderia se afigurar nas páginas dos livros, sem constrangimentos, pensei. Passei pela experiência dos poemas, contos e crônicas e queria ir além com a escrita de novelas e romances. Comecei a escrever então uma novela, cujo título seria “O cântico de Medusa”, transcrevo uma parte dela, pois, apesar de finalizada, decidi expor a vocês, meus leitores, alguns trechos dela: “Era carnaval. A família estava reunida na Avenida Atlântica. A mulher, baixa, morena e gordinha não era bonita, mas se casara com um homem belíssimo, louro, de olhos azuis, que estava vestido de pirata. Ela e a filha estavam vestidas de odaliscas, e o irmão da moça de 20 anos não se fantasiou, pois não gostava destas artimanhas da folia. A menina era como o pai, clara, de cabelos louros e olhos azuis como o oceano em seu estrondo de liberdade. Ela era o ímpeto e o furor como o pai, dois oceanos que se encontrariam pelo destino, trágico, em essência, como vocês verão. O menino, de 16 anos, tinha puxado à mãe, moreno, mas magro, se contorcia em es- pasmos naquela festa ridícula, como ele dizia.

Ele se casara com ela pelo interesse financeiro. Rosa era de uma família de empresários, milionária, tinha encontrado Mário há muitos anos justamente numa festa de carnaval. Encantou-se logo por ele, que, naquele momento, estava bêbado. Ele era taxista e não estava trabalhando durante a festa. Agora, em pleno carnaval de 2019, a sua esposa suspeitava que ele teria uma amante, pois ele chegava na cobertura de luxo dela no Leblon nas madrugadas e ela já estava furiosa com isso.

Ana Clara, a filha deles, estava se divertindo bastante, pois adorava o samba e sabia como ninguém rebolar até a exaustão, encantando todos os homens à sua volta, o cântico de sua voz melodiosa seduzia a todos, pois tinha uma beleza diferente, telúrica, vinda das profundezas da terra, da origem de tudo, de uma saudade primeva que acalentava os homens no seu dom de embalá-los no seu doce prazer. E se a bela moça fosse outra Medusa, uma paródia dela? Se essa Anti-Medusa, ao invés de petrificar pelo olhar, encantasse pelo canto, pela música provinda da caverna do som? Se seus cabelos não fossem serpentes, mas sóis imaginários da poesia e da música? Se as sereias fossem suas irmãs e não as malditas Górgonas? Uma Medusa em sentido horário, olhando para o futuro e não para o passado, o anti-horário da mumificação. Uma Medusa cujo cântico assombrasse os seres e não os matasse, mas os perdesse no erótico jogo do amor. Uma Medusa mais do que mulher, um símbolo do poder do amor. Mas o quanto esse amor pediria? Se fosse subversivo e quebrasse todos os padrões morais e sociais vigentes? O decoro, o tabu, o interdito? Ana Clara era a transgressão, como diria Bataille, em querer atingir o infinito, la petite mort dos sentidos na sua via transbordante a atingir o cosmos”.

Já o romance, que estava esboçando e que abordaria o tema da loucura, ainda sem título, começava assim: “Aqui jazem as memórias de minha loucura num mundo insepulto. Antes disso, boas doses do uísque das religiões com seus assombros e irrealidades, elevando-me a um universo etéreo e cheio de incorporeidades. De madrugada, era a hora mais criativa. No meio de músicas New Age, ao vibrar corrosivo da poesia, recriava 50 poemas comuns, surrealistas e líricos, transformando-os em textos altamente eróticos de uma mulher magmática e plena de desejos mórbidos, como se a morte coabitasse com o prazer, trazendo o gosto das flores num orquidário murcho de lembranças impassíveis. Acreditava nas promessas de antes. Em meio a um vegetarianismo ascético, minha cabeça gravitava nos poros de ideias suicidas após aquele dia fatídico de sua voz nervosa e agressiva. Sou dada a delicadezas. Não cogito em apagar os alicerces do mundo. Prefiro a paz inodora dos instantes”.

Pensei com os meus botões. Nossa, quanta mudança na minha escrita! Não esperava que fosse avançar tanto e conseguir uma plenitude estética maior. Estava dominando os gêneros literários em suas várias vertentes. Mas, de repente, sou acometido por uma falta de ar e começo a me desesperar, pensando que estava infectado pela nova doença. Em vez de procurar ajuda, deixo-me dominar pelo desejo de morte e fico vários dias em casa com essa falta de ar, sem precisar de ninguém. Não sei por que tal estranha força, sou levado pelo caminho da estrada mortal. De repente, acordei num outro lugar, havia um jardim com vários escritores que já faleceram. Todos me convidaram a me sentar junto com eles, que bebiam um néctar em cálices de ouro. Drummond, no meio deles, afirmou: “– Desafio todos os escritores a dizer o mais belo poema de amor. Estamos num banquete amoroso. Aquele que recitar o poema mais primoroso, retornará à vida e poderá encontrar um mundo novo”. Todos aceitaram o desafio e começaram a declamar os poemas jamais lidos no plano terrestre. Após todos declamarem, eu me apresentei e recitei um poema que não ouso expor ao mundo dos vivos, incitando- lhes a imaginação… Só sei o seguinte. Depois que disse meu poema, acordei no mundo dos vivos. Havia uma aura de beleza e frescor nesta nova realidade. A pandemia tinha se extinguido e estava num outro tempo, não assolado pela morte e desespero.

Passaram-se alguns meses, e enviei para uma editora reconhecida o meu novo livro de poemas, experiência única e ímpar, que teci no reino dos mortos. Como a morte, de repente, se transformou em vida e prazer, jamais compreendi. Em memória de minha morte repentina e instantânea com meu retorno à vida, transcrevo o poema que abre o livro. O livro ganhou um dos principais prêmios de poesia do Brasil. Sou grato aos escritores consagrados já falecidos, por todo o meu sucesso.

Voo rasante

Tenho uma vida dentro da página Um labirinto que sufoca meu medo
Deixando transparecer as asas de um pássaro Clamo pela chama em noite fria
Busco o tempero nas coisas amenas O sol já se levantou nos meus versos
Procuro uma saída pelo vagar das linhas Amo-te como quem esconde um segredo Na caverna interna de meu esboço Desenhos flutuam nas águas tranquilas
A tempestade se amedronta com teus passos Acolho a flor dos mistérios
Na minha palma de criações Espero que o voo seja rasante Entre a terra e a tua boca.

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