Arnaldo e Dirceu – Um Conto de Thaíse Santana

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Thaíse Santana nasceu em Itabuna, Bahia. Autora de Mulher-Palavra (no prelo), que será publicado pela Editora Patuá, 2021. Professora, pesquisadora, ativista e mediadora de leitura. Mestra e doutoranda em literaturas. Tem artigos publicados em revistas científicas e poemas, em antologias literárias. É coautora de Cadernos Negros: poemas afro-brasileiros, v. 43, Quilombhoje. No instagram usa o perfil @thaisesantanasou , onde compartilha fragmentos de sua vida-escrita.


Enganoso é o coração,
mais do que todas as coisas.
(Jeremias 17:9)

No final da antiga Rua do Ouro, há uma ponte. Embaixo da ponte, um rio. “O Rio das Velhas lambe as casas velhas. Casas encardidas onde há velhas na janela”. Num casarão imponente, avistamos a placa “Medeiros Brito Advocacia”. Dentro ali, dois amigos trabalham e conversam e partilham o dia. Mais que isso, Arnaldo e Dirceu partilham memórias, segredos, a vida.

A Medeiros Brito foi criada pelos avós de Arnaldo, que foi mantida pelos seus pais e agora pertence-lhe. Arnaldo é o mais bem sucedido advogado da cidadezinha. Um homem arguto e de coração sensível. Costuma ajudar as pessoas, inclusive, advogados em início de carreira (ainda que não haja tantos como ele). O seu coração vai explicar a origem da amizade com Dirceu.

Há vinte anos, Arnaldo sofreu o infortúnio, que mais cedo ou mais tarde, chega a todas as gentes: a morte de um ente querido. O seu pai, o doutor Antônio de Assunção Medeiros Brito sofreu um infarto fulminante e fez a longa passagem. Não teve tempo de se despedir da família. Na triste ocasião, Arnaldo estava fora da cidade. O filho único do doutor Antônio e da Dona Maria Amélia voltou às pressas, para cumprir os rituais fúnebres.

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Contudo, foi difícil para Arnaldo seguir os ritos da sua vida. Estar vivo é uma benção, ele acredita, mas sabe também que esta benção exige muitas obrigações. Ainda mais quando se é o herdeiro dos negócios da família. Por isso, Arnaldo buscou ajuda médica. Perdas e ganhos chegaram de mãos dadas à sua vida e o pobre Arnaldo (nem tão pobre assim, é verdade) não soube lidar com os eventos paradoxos. Seu coração é demasiado sensível.

Durante nove meses, Arnaldo frequentou, religiosamente, o consultório do doutor Haroldo de Carvalho. Nessa ocasião, conheceu Dirceu. Homem franzino, de vinte e pouco anos, de voz aguda e vacilante. Dirceu era branco, de uma brancura que se enxerga ao longe. Bem educado e mal vestido. Suas vestes contrastavam com o ambiente de trabalho. Por outro lado, o seu corpo exalava um cheiro de sândalo, de algum perfume francês.

Dirceu era o assistente do doutor Haroldo e também estudante de Direito, graças à ajuda do patrão. Nas horas vagas, era leitor de Flaubert e Baudelaire. Curiosas eram suas ações no dia a dia. Cumprimentava os colegas com salut, despedia-se com au revoir, num gesto de gente que “agita águas rasas para parecer profundo”, como alerta-nos um mestre grapiúna.

E por que não medicina, questionou Arnaldo, enquanto entregava a Dirceu seu documento para o preenchimento da ficha. Quero combater as injustiças desse mundo, ele respondeu. Dirceu não soube, mas naquele momento, conquistou o coração do advogado. Após trocarem outras palavras, Arnaldo se encaminhou ao sofá, e ali aguardou sentado, pacientemente, enquanto Dirceu preenchia a sua ficha. Disfarçadamente, o recepcionista olhava o paciente, examinando as suas roupas, o sapato, o cabelo. Quando terminou de preencher a ficha, autorizou a entrada de Arnaldo. Este agradeceu e adentrou à sala de atendimento.

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Passam-se vinte anos após esse encontro. Arnaldo e Dirceu estão no escritório conversando sobre uma festa de aniversário. É o centenário da  Medeiros Brito que se aproxima, e Arnaldo quer celebrar a longa  e frutífera existência da empresa. Elege Dirceu para liderar a organização do evento e assegura-lhe que a sua secretária estará a postos, para executar tudo o que for preciso. Dirceu pensa que organizar festas não é tarefa para um homem da sua posição. No fim das contas, ele se contenta e aceita a incumbência.

Os dias passam e algo curioso acontece no escritório. Alguns funcionários começam a receber bilhetes anônimos. Quem os recebe, não se ofende, mas lê e joga fora, imediatamente, como se não quisesse fazer parte da trama misteriosa. O perigo ronda o escritório Medeiros Brito durante alguns dias, e logo, vai embora.

Numa bela tarde de sexta-feira, quase fim de expediente, Arnaldo é surpreendido por uma visita agradável. Recebe em sua sala uma colega de trabalho, também advogada da Medeiros Brito. Ana Cláudia foi, um dia, muito mais que colega. Hoje, ela é alguém da confiança de Arnaldo.  Eles conversam por alguns minutos e ela despede-se, já saindo da sala. Arnaldo tenta voltar ao trabalho, mas o seu pensamento está distante, confuso.

Os dias que antecedem à festa exigem de Dirceu um tempo ainda maior de trabalho. Ele está sobrecarregado, a ponto de não sair do escritório antes das vinte horas. Do outro lado, Arnaldo se prepara para ir embora. Antes de sair, passa na sala do amigo. Dirceu nota Arnaldo um tanto taciturno e demonstra preocupação com a sua saúde.  Arnaldo diz que está tudo bem, e num gesto solidário, libera Dirceu do trabalho. Mas é só hoje, adverte Arnaldo sorrindo. Dirceu agradece e apaga as luzes.

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Os dois saem juntos do escritório. Antes de chegar no carro, Dirceu percebe o seu retrovisor quebrado. Caralho! Quem fez isso? Ele pergunta atordoado. A noite está calada. Àquela hora, já não há velhas na janela. Então, ele mesmo vai em busca de reposta. Corre para averiguar o acontecido. Quando, finalmente, aproxima-se do veículo, sente um impacto. Um tiro.

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