Sara Athouguia nasceu num final de tarde, em março de 1993. Curiosa de viver, em criança sonhava viajar pelo mundo e pelo tempo. Atualmente, é doutoranda em História, no Instituto Universitário Europeu. Vive entre Florença e Frankfurt, embora a sua alma seja lusitana e a sua casa seja a língua portuguesa.
As pessoas estão sempre a desaparecer. Umas morrem, outras saem das nossas vidas e há ainda aquelas que se tornam invisíveis. Há muitas formas de desaparecer. De desaparecermos. Nós, o outro e um para o outro. Eu também devo ter desaparecido para alguém, não sei, mas não tenho a sensação de estar desaparecido.
Em Lisboa, cruzamo-nos todos os dias com gente desaparecida ou em vias de desaparecer – ou com aquela gente que não se vê de tanto se ver. Talvez o diga não por Lisboa ter mais gente a desaparecer do que qualquer outro lugar do mundo, mas por ser onde nasci e cresci, a minha cidade, aquela onde aprendi a ver o que é invisível e a ignorar o que não quero ver.
A caminho do trabalho, passo todos os dias por um velho, um sem-abrigo que faz de uma rua estreita, perto do Chiado, a sua casa sem teto nem calor. Vejo-o sem o ver, e ele torna-se invisível quando eu finjo que não o vejo, porque penso que ele não pode saber que o vejo se eu fingir não o ver. Afinal, ele é invisível (ou quase), porque provavelmente as pessoas para quem ele desapareceu já o esqueceram. Na prática, ninguém sabe quem ele é, ninguém o quer ver e ele não é nada a ninguém que o vê fingindo não ver.
Ele não é um velho muito velho, apenas foi envelhecido pela rua. Pela vida. Lá o vejo sem ver, sentado no passeio em silêncio, observando quem não está desaparecido a passar. A sua boina encontra-se pousada no chão, virada para os céus, mas o velho não impinge ladainhas nem força a esmola. Tem um caderno A5 vincado pelo desconforto e sujidade, e nele vai escrevendo de vez em quando, alheado da sua própria realidade.
A jovem que vai à minha frente, de vinte e poucos anos, um pouco desengonçada e de feições inconspícuas apesar do extraordinário cabelo ruivo, deposita umas moedas na boina. Aproveito para, pela primeira vez, prestar atenção ao velho invisível, desacelerando o passo, mas ainda a fingir que não o vejo.
Ele olha para as moedas que a ruiva lhe deixou e tenta chamá-la, embora ela em dois passos já o tenha esquecido – a ele, o velho, mas talvez não a caridade.
– Menina! Ó menina, espere lá um minutinho! – Não acredito, o velho vai ter o descaramento de lhe pedir mais… pobre e mal-agradecido! A jovem lá se vira na direção do velho, magnânima e amena. Até lhe sorri, que ingénua! – Qual é a sua graça?
– Desculpe?
– O seu nome. – Pede ele, de caderno e caneta em punho.
Ela volta a sorrir-lhe e desta vez quase poderia ser considerada bela.
– Inês.
O velho escreve diligentemente aquelas quatro letras e o acento circunflexo. Olha novamente para cima, ao estilo de funcionário público do outro lado do balcão, inquirindo:
– Inês quê?
– Inês, só Inês. – Acho que ela agora está a desconfiar e não lhe quer dizer o seu nome completo. Vá lá, tem algum tino.
O velho sorri-lhe.
– Muito bem, “Inês, só Inês” dos cabelos ruivos, agradeço a sua ajuda! Um dia devolvo-lhe o dinheiro! – Notando a expressão cética da jovem, ele explica, apontando para o seu caderno num gesto amplo e cheio de confiança: – Está tudo aqui registado, as minhas economias, quanto devo e a quem!
A jovem ruiva cruza o olhar comigo e percebe que assisti àquela interação tão inusitada. Encolhe os ombros, como que dizendo “coitado!”, e segue o seu caminho. Ela já desapareceu ao fundo da rua e eu já desapareci para ela também. O velho ali continua camuflado, invisível para os transeuntes, parte da calçada feita de pedras caladas e imóveis.
Que será feito dele? Do velho que não é invisível, daquele que desapareceu? Terá desaparecido para quem? De onde desapareceu e porquê?
O velho repara que estou a olhar para ele, percebe que o consigo ver. Acena-me, como se nos conhecêssemos. Será que o conheci antes de ele se tornar invisível? Faço um esforço de memória, mas não há nada nele que me seja familiar. Não, tenho a certeza: não fui uma das pessoas para quem ele desapareceu.
O olhar dele dói-me. Não o conheço, mas podia tê-lo conhecido. Quando ele era gente, antes de se ter tornado invisível. É tão fácil desaparecermos, as pessoas estão sempre a desaparecer. E se eu fosse ele? Ele poderia ser eu. O pensamento primeiro arrepia-me, depois enoja-me. O velho devia tornar-se mesmo invisível para eu não ter de me deparar com a sua desgraça que, de tão humana, me revolta.
– Para onde é que está a olhar?! – Lanço a pergunta ao velho, com uma indignação aparentemente despropositada, se não se soubesse a repugnância visceral que o velho e a sua condição me provocam. Arrependo-me rapidamente do tom irado, mas naquele momento culpei o velho invisível por me olhar e por eu o conseguir ver.
O velho dá-me um sorriso em resposta, meio ironia, meio compaixão. Dá-me um sorriso como se fosse mais do que invisível, como se ele fosse como eu.
Decido não perder mais tempo com aquele desgraçado e continuo o meu caminho, fingindo que o seu infortúnio é só seu e que nunca poderia ser meu. Já de costas para o velho, tentando esquecê-lo, ainda o oiço dizer, de voz luminosa:
– Tenha um bom dia!
Quis voltar atrás. Ordenar-lhe que não se atrevesse a ser algo mais do que invisível. Implorar-lhe que não fosse tão humano, para que eu pudesse continuar a fingir que a sua tragédia não era mais do que fábula ou hipérbole.
Quis voltar atrás, mas não o fiz. Continuei a fingir que o velho era invisível e que a sua invisibilidade nunca poderia ser minha. As pessoas estão sempre a desaparecer, mas uma coisa é desaparecermos, outra muito diferente é tornarmo-nos invisíveis.
Cheguei ao meu destino e esqueci o velho. Tinha trabalho a fazer, tinha a minha vida para viver. É egoísta, talvez, mas eu ao menos admito que não quero saber do velho. Não lhe dou esmolas insinceras só para que os outros vejam como sou moralmente irrepreensível nem – pior! – lhe dou falsas esperanças para satisfazer a minha própria consciência. Ele é invisível e é assim que eu quero que ele continue, pois se víssemos tudo o que é invisível enlouqueceríamos.
Vivi o dia como tinha de o viver, como se fosse – e foi – apenas mais um dia. No caminho de regresso a casa, passei novamente pelo cantinho do velho. Fazia parte do meu trajeto diário, mas eu já tinha esquecido o velho e não me lembrei de percorrer um caminho alternativo para o evitar. Para quê? Ele continuaria a ser invisível, tinha de ser.
Recordei a nossa interação matinal quando vi o seu vulto estendido no chão, sobre duas camadas de cartão e coberto por uma manta, numa espécie de leito improvisado. O velho contorcia-se debaixo da manta, não sei se de frio, se de fome ou se dos olhares daqueles que o achavam invisível. Tive pena dele, enchi-me de dó, não da sua condição, mas, sim, da sua solidão. Ele era invisível para os outros, que faziam por não ver o seu infortúnio, e por isso estava sozinho. Na rua, na vida, mas sobretudo na sociedade que fazia dele invisível para que tudo o resto pudesse continuar a ser, simplesmente ser, sem levantar questões desconfortáveis de ‘como’ ou ‘porquê’.
Se ele morresse, morreria ali, sozinho e invisível. Ninguém saberia o seu nome ou a sua história e, sem história já se sabe, somos sempre esquecidos. Mas se ele morresse ali naquela noite, de frio, de fome ou de desgosto, quem o notasse morto insurgir-se-ia contra a sociedade que fez dele invisível, para depois continuar a fingir que não vê os outros invisíveis que existem por aí. Quem o notasse morto iria condoer-se da morte, não da vida invisível que ele levou, porque essa vida foi feita à margem da sociedade, ninguém a pode contar ou controlar.
Com todos estes pensamentos a gritar-me por empatia, decidi comprar alguma coisa para o velho comer. Deixar-lhe dinheiro não, porque não tenho nenhuma garantia que o velho não vá gastar em vícios e recuso-me a esbanjar.
Parei no café mais próximo, um desses cafés estilosos e populares onde todos os clientes seguem o mesmo dress code e onde se fala uma língua que nem parece bem ser a nossa, feita de estrangeirismos. Esses são normalmente anglicismos, como dress code. Embora seja uma escolha aparentemente insignificante, todos nós julgamos aquele que diz dress code de forma diferente daquele que prefere usar palavras portuguesas capazes de designar a mesma ideia. Diz-se dress code, então, porque somos gente culta e com educação, ou é isso que queremos demonstrar.
O menu é composto de pratos exóticos, que soam caros só de pronunciar. Nada é simples, mas tudo se pode comprar. Esse é o mundo em que vivemos, o monstro que nos devora e que nós deixamos devorar. Para não desaparecermos, para não sermos invisíveis, e porque temos uma hierarquia para respeitar – uma cadeia alimentar em que comemos para depois nos deixarmos devorar.
Compro uma baguete com queijo e tomate, a mais simples que encontrei, e peço também a sopa do dia, algo com um nome impronunciável, mas que afinal é só sopa de abóbora.
«A sopa é para levar, podia dar-me uma colher, por favor?» ao que me respondem que não, claro que não podem, porque não são um desses estabelecimentos atrasados e a raiar o criminoso que ainda cedem colheres de plástico aos clientes. São um café environmentally friendly, informa-me a senhora com orgulho, do outro lado do balcão. O velho lá terá de beber a sopa diretamente do copo largo de cartão.
Para meu alívio, saio finalmente do café e aproximo-me do velho, ainda escondido debaixo da manta. Paro à frente dele, segurando a comida que comprei para lhe dar, sem saber muito bem como proceder. Não quero vê-lo nem quero que ele me veja. Não sei se é por não querer que ele saiba que tive pena ou se é porque não quero que ele se julgue mais do que invisível.
Tentando não fazer alarido, pouso a comida ao lado dele e toco ao de leve no vulto coberto pela manta. Apesar da minha cautela, o corpo dele responde com surpresa ao facto de sentir alguém tocar-lhe e isso acaba por também me sobressaltar. Viro costas e vou-me embora apressado, como que fugindo do local do crime, sentindo ter infringido uma qualquer regra nunca escrita da vida em sociedade.
Atrás de mim, oiço o velho chamar-me:
– Ó cavalheiro, espere lá que eu não sei o seu nome! – Não hesito e continuo como se não o tivesse ouvido. O velho é invisível, tem de ser. Mas ele recusa a invisibilidade e ainda tem o descaramento de me gritar ao longe: – Muito obrigado pela janta, amigo, vou rezar por si!
É isso, e que Deus me pague.
Quando cheguei a casa, esqueci o velho novamente, apesar de ele já não me ser tão invisível.
Esqueci-me da existência do velho até à manhã seguinte quando, a caminho do trabalho, voltei a vê-lo, fingindo que não o via. Lá estava ele, sentado no chão da calçada, vendo passar quem o julgava invisível. A sua figura já não era humana, fazia parte do padrão urbano que servia de pano de fundo ao caminho, mais ou menos planeado, daqueles que passavam – daí ele ser invisível. O velho é parte da rua, não da sociedade.
Viro a cabeça para não o ver e também para fugir do seu olhar. Porém, não consigo. Não sei se é ele que é menos invisível ou se sou eu que momentaneamente não consigo fingir não o ver. Há de ser um pouco dos dois, talvez.
Ele olha para mim e reconhece-me. Não de passar por ele todos os dias. O velho sabe que fui eu que lhe deixei a comida ontem. Faz-me um aceno alegre e amigável, que eu prontamente faço por ignorar.
Continuo o meu caminho, mas desta vez ele segue-me, deixando para trás a sua invisibilidade. Raios, que inconveniência! Porque é que ontem me havia de ter dado para caridade?!
– Espere lá só um minutinho, que eu não consigo apanhar-lhe o passo!
Os transeuntes estão agora a olhar para o velho, desagradados ou temerosos. Ainda não o veem, claro que não, lá continuam a fingir não o ver (que dá no mesmo), mas sabem que ele deveria ser mais invisível, porque é assim que tem de ser.
Sinto que, de alguma forma, o olhar de desaprovação e medo também me é dirigido. O velho não me devia seguir, ele é invisível. Se me está a seguir é porque deixei que ele soubesse que o vejo.
Paro subitamente o meu passo apressado e rodo nos calcanhares, virando-me para o velho. Agiganto-me, pronto para o ataque.
– Ó homem, pare de me seguir! – O velho está demasiado perto de mim. Consigo cheirá-lo, consigo vê-lo. Numa tentativa de o afastar, continuo a falar num tom exaltado, como quem se depara com o inconveniente de ter de enxotar uma mosca do prato: – Vá-se embora, que eu não tenho trocos, não tenho nada para lhe dar!
Ele levanta os braços, mostrando-se desarmado para a polícia que ali não estava. Eu, como qualquer outro cidadão, tenho mais medo da não-invisibilidade do velho do que de qualquer outra coisa que ele possa fazer, portanto o gesto não me deixa descansado.
– Não se preocupe, não lhe vim pedir nada. – Com todo o cuidado, como se cada um dos seus gestos estivesse a ser observado por um cão raivoso, o velho remexe os bolsos e estende-me umas moedas. – Fui hoje de manhã lá perguntar o preço da sopa e da baguete ao café (vi o logótipo nos guardanapos) e está tudo aqui! Cinco euros e setenta cêntimos, contado e certinho!
Fiquei boquiaberto e limitei-me a olhar, meio aparvalhado, para o velho e para as moedas que ele me estendia, como se eu é que fosse o pedinte. Senti-me estranhamente miserável, ainda mais com a reprovação no olhar dos transeuntes, que me ia consumindo lenta, porém insidiosamente…
Não, eu não sou como o velho. Eu não sou invisível, nem me sinto desaparecido. Eu sou muito diferente do velho, embora não esteja assim tão distante dele. Tenho de lhe mostrar que, embora estejamos tão próximos na imprevisibilidade do destino, eu mantenho o meu estatuto de pessoal visível, de cidadão responsável e cumpridor.
– Guarde as moedas, para que é que eu haveria de querer trocos?! – Desdenho, por ser a única coisa que me ocorre dizer. Para manter as devidas distâncias daquele indesejado da sociedade, claro. Para lhe mostrar que a caridade só pode ter um sentido, porque se não o mundo ficaria todo ao contrário. Quem seria o pobre? E o rico, quem seria?
– Sempre que tenho um golpe de sorte, tento devolver o que as pessoas me deram num momento de infortúnio. – Aproveitando o meu silêncio e generalizada incapacidade de reação, o velho aproxima-se ainda mais. – Vá lá, amigo, aceite, que é de coração cheio que lhe posso devolver o bonito gesto. Faça-me sentir verdadeiramente afortunado!
Como se não pudesse comandar o meu corpo, estendo a mão. Estendo a mão ridiculamente, eu, de fato e gravata, ao velho invisível nos seus trapos e na sua tão visível desgraça. Estendo a mão e, de repente, sinto que sou eu a mendigar humanidade – ao velho, mas também a todos aqueles que passam.
O velho sorri com aprovação, e eu sinto que o conheço. Quem é ele? Quem é que ele não é?
Podia ter-lhe perguntado, mas não o fiz. A infração já tinha sido suficientemente grande e a ofensa ainda maior. Era momento de o velho descer do alto da sua dignidade e remeter-se à invisibilidade.
Ele é uma ponta solta e se a puxarmos sabe-se lá o que vem atrás, o que nos pode acontecer. Por isso é que fingimos não ver o velho e tantos outros como ele: é para não sentirmos a tentação ou a curiosidade de puxar a ponta que está solta da sociedade.
Continuo a percorrer a mesma rua todos os dias, mas nunca mais vi o velho. Talvez nem a sua denodada relutância tenha sido suficiente para impedir a consumação do estado de invisibilidade.
Contudo, prefiro supor que o velho simplesmente decidiu desaparecer da minha vida, agora que sabe que eu o consigo ver. Acredito – quero acreditar – que ele desapareceu da minha vida para aparecer na vida de alguém que o saiba receber. Afinal, as pessoas estão sempre a desaparecer, mas muitas delas desaparecem apenas para poderem reaparecer noutro tempo, noutro lugar ou até noutra companhia. Pensamos que são os desencontros, mas na verdade são os reencontros que nos fazem desaparecer. É por isso que as pessoas estão sempre a desaparecer.
Sou brasileiro e estou fazendo uma pesquisa sobre meus ancestrais em Portugal, de sobrenome Athouguia. Me encontrei nesta página nao sei como, prendido pela ótima leitura. As coisas que nos prendem realmente chegam a nós da forma mais inusitada. Parabéns pelo trabalho!