Maya Falks nasceu Márcia, no dia mais frio de 1982 (hoje, há 37 anos). Começou a criar histórias aos 3 anos, ditando as narrativas à mãe. Escreveu seu primeiro romance aos 7 anos, o segundo aos 10 e a primeira antologia poética aos 14, nenhum deles publicados. Atualmente, Maya é publicitária, jornalista e autora dos livros Depois de Tudo, Versos e Outras Insanidades, Histórias de Minha Morte e Poemas para ler no front. Santuário é seu romance recém-lançado pela Macabéa edições. Escreve resenhas e reportagens para o projeto “Bibliófilo a Cotidiana”. Leciona escrita criativa por meio do Escritório Literário.
Espaços Fechados
Do lado de fora, há uma guerra.
Apesar do silêncio, há uma guerra. Estou trancada em meu quarto tem pelo menos quarenta e cinco dias. Quarenta e cinco amanheceres nesse espaço de poucos metros quadrados, muito maior do que onde Ravena, minha irmã, está nesse momento. Ela ocupa poucos centímetros; seu novo quarto é marrom por fora, tem detalhes em bronze e fica, agora, sobre a mesma estante onde estão nossos retratos da linha do tempo.
À esquerda da urna, há um retrato de nós duas, sem alguns dentes, depois ostentando as mesmas roupas iguais, que foram nossa marca registrada na infância, para ninguém saber quem era quem. À direita, nós duas, quando passamos no vestibular, sujas de farinha e ovo, e depois meu retrato de toga enquanto Ravena fazia só figuração.
Ela era espírito livre, nunca aceitou essa ideia de ficar trancada em casa.
Quando nos disseram que essa guerra invisível começaria, ri dela, imaginando que aprenderia a escalar paredes com a unha para não precisar ficar ali, naquele apartamento pequeno, se remoendo em uma claustrofobia imaginária porque ali não tinha espaço para ela ser o animal selvagem que sempre disse ser.
Eu, ao contrário, nunca tive dificuldade de permanecer em completa inércia. Minha liberdade sempre foi no campo das ideias, e eu nunca precisei mover um único dedo para realizar mil malabarismos e viagens fantásticas.
– Você vai virar gelatina – ela dizia.
– Você vai virar alvo na temporada de caça – rebatia, arrancando aquele riso frouxo de quem se identificava mais como leoa do que como gente. Braba como só ela, garbosa, mandona e livre.
Era inacreditável que dividimos o mesmo útero por quase nove meses. E digo quase porque nem ali Ravena teve paciência de permanecer em um espaço fechado até o fim e me obrigou a sair do conforto do ventre quatro semanas antes do esperado.
Dizem que nascimentos antecipados são comuns entre gêmeos, eu ainda acho que isso aconteceu porque Ravena tinha pressa. Ela sempre tinha pressa. Talvez soubesse que teria uma vida breve ou talvez tenha tido a vida breve por ter pressa demais.
Apesar do silêncio, há uma guerra lá fora. Ela não entendeu porque sempre víamos guerras como coisas extremamente barulhentas. Acho que foi quando chegamos à agitação da emergência que ela entendeu que era uma guerra, mas aí já era tarde demais. Sempre é tarde demais quando temos tanta pressa, era o que vovó dizia a ela quando vomitava depois do almoço porque devorava a comida num só fôlego para ir pra rua brincar mais rápido.
Decretaram a quarentena por aqui em um domingo. Vimos na TV. Ravena saiu da sala aos berros, falando todos os palavrões que poderiam caber no vocabulário de uma menina de 23 anos. E ela era criativa, a danada, saíram até uns palavrões híbridos. Ela se trancou no quarto. Eu achava engraçado quando ela se trancava no quarto porque era um espaço pequeno e ela não aguentava mais de que um ou dois minutos.
– Deixa de drama, Ravena, é só um período, depois passa – falei quando ela passava por mim batendo as
tamancas no piso de madeira do corredor.
– Pra você é fácil, né? Basta continuar fazendo nada, como sempre foi.
E seguiu para a cozinha, onde quebrou o terceiro copo da semana. Ela simplesmente não conseguia segurar qualquer objeto quando ficava muito agitada. Mamãe prometeu que a levaria ao médico a vida inteira, nunca cumpriu, até porque era difícil mesmo planejar qualquer coisa envolvendo Ravena; a chance de ela desaparecer pelos matos que circundavam o bairro era imensa.
Na terça-feira, nem dois dias de quarentena decretada, acordei no final da manhã com mamãe e Ravena discutindo. Ravena dizia que tinha um festival na casa de campo de um amigo, que fica a poucos quilômetros daqui e que já estava marcado há mais de um mês. Ela faria a discotecagem e não poderia faltar. Questão de responsabilidade, dizia.
– Ravena, pelo amor de Deus, isso aqui é assunto sério, filha!
– Meu trabalho também é assunto sério, mãe! Eu fui contratada pra colocar música na festa, não vou falhar!
– Mas Ravena, é uma pandemia! Esse festival nem deveria acontecer!
– Não foi cancelado, nem todo mundo embarca na histeria coletiva. Deixa de drama, eu levo o álcool e tá tudo bem.
– Não, no último festival, você voltou quatro dias depois, acha mesmo que pode conviver em segurança com um monte de gente por quatro dias?
– Por favor, mãe, essa ideia de que essas pessoas são sujas vem de gente preconceituosa!
– Não estou falando em limpeza, filha, estou falando do vírus!
– Vocês acreditam fácil demais nessas coisas, credo! A vontade que eu tinha, ouvindo da porta do quarto, era pegar Ravena pelos cabelos para que deixasse de ser cretina. Tinha gente morrendo. A quarentena só foi decretada depois que a pandemia saiu de controle. Não há exagero em medidas de segurança quando o jornal precisa ampliar o espaço do obituário.
– Dona Araci morreu ontem, vieram os moços uniformizados tirar ela de casa. A família não teve nem chance de se despedir, levaram direto pra cremação
– falou mamãe tentando segurar o choro.
– Dona Araci já estava fazendo hora extra no mundo.
Eu sou jovem, muito mais saudável que vocês. Sem drama, vou lá, faço meu trabalho e volto.
– Não volta, vai arranjar um canto pra fazer quarentena – falei, invadindo a conversa.
– Olha só, projeto de clone, eu não dou a mínima para suas paranoias, vou lá fazer meu trabalho e volto pra casa, enquanto você fica aí, se ocupando de ser uma matéria estática.
Eu não lembro o dia em que Ravena começou a me odiar, mas lembro que já fazia bastante tempo. Foi quando ela começou a namorar um garoto da escola, tínhamos entre treze e catorze anos, e eu me passei por ela porque nunca tinha beijado e queria saber como era. O garoto caiu no meu truque, mas percebeu que eu não era ela na hora do beijo. Naquela noite, Ravena me bateu, nem mamãe conseguia tirar ela de cima de mim.
Ela foi embora de casa na manhã seguinte pra morar com o garoto na casa da família dele. Ela não falava mais com a gente, mas mamãe conseguia notícias falando diretamente com os pais dele. E foi por terceiros que descobrimos que Ravena estava grávida.
Os pais dele, sempre tão polidos, educados, gente de bem, botaram minha irmã pra correr porque onde já se viu uma mocinha de catorze anos sem nenhuma educação sexual engravidar do namorado com quem divide a cama sob supervisão deles? Não teve conversa, Ravena foi colocada na rua carregando o neto deles, numa madrugada qualquer.
Mas ela não voltou pra casa. Tinha vergonha. Fomos saber dela dias depois, em um hospital, se recuperando de um aborto, causado por uma tentativa de suicídio. Ravena, tão cheia de vida, tentou morrer. Ela então aceitou voltar, mas, apesar do ódio que nutria pelo ex-namorado – de quem nunca mais tivemos notícias –, não me perdoou, ou pelo menos não o bastante para voltarmos a ser amigas.
Eu não me importava, também a odiava da minha maneira. Éramos idênticas, me preocupava o fato de ela ser tão livre ostentando por aí as minhas fuças. Foi aí que comecei a pintar o cabelo, numa tentativa meio boba de me diferenciar da minha irmã doidona.
Ravena não aprendia nem na dor. Todas as vezes que mamãe tentava impedi-la de fazer bobagem, ela tinha que ser resgatada em seguida de algum apuro. Dessa vez, a gente sabia que não seria diferente e sequer seria a primeira das suas enrascadas que poderia ser potencialmente letal.
E foi assim que Ravena voltou pra casa quatro dias depois do começo do tal do festival. Estava destruída. Tentamos não entrar em paranoia, afinal, não sabíamos quanto tempo nesses quatro dias ela tinha efetivamente parado para dormir ou descansar um pouco.
Por uns dias, ficou quieta na cama, tomando o caldo de galinha de mamãe e muita água para se reidratar. Mas não demorou para ela mesma perceber que seu cansaço parecia não ter fim. Também não demorou para os primeiros calafrios e para ela me acordando de madrugada desesperada tentando puxar ar.
Ela não queria sair da cama, dizia que não aguentava dois passos, então mamãe ligou para o pronto-atendimento.
– Que idade tem ela? – perguntou a atendente.
– 23, 23 anos.
– A senhora não se preocupe, não é grupo de risco. Vai ficar tudo bem. Aconselhamos a manter ela em quarentena porque ela dificilmente conseguirá leito no hospital.
Mamãe chorou.
Qual é? A gente conhecia Ravena o bastante pra saber que sua letargia era um sintoma grave. A menina tinha a energia de uma hidrelétrica e agora não conseguia levantar da cama. Dizia ela que a dor no peito causada pela falta de ar parecia um ataque a facas.
E aí soubemos que, de toda a molecada que participou do festival, já havia um rastro de mortes. Dos próprios jovens, já se somavam três, mas o grave mesmo ficou para os bastidores; muitos hegaram infectados nos pequenos apartamentos que dividiam com pais e avós, e aí o índice de mortalidade se multiplicava. A mãe de Samuel, que trabalhou no bar do festival, ligou lá em casa pra contar que o rapaz estava entubado e que a sogra tinha sido cremada no dia anterior.
A pandemia estava de plantão na porta da nossa casa. Ou melhor, na cama ao lado da minha. Me mudei temporariamente para a sala. Deixamos Ravena sozinha no quarto, e mamãe entrava lá para levar comida, analgésicos, medir a febre e improvisar um banho a cada dois dias.
Um dia, em meio aos meus cochilos entediados, acordei com um grito de mamãe. Ravena não se mexia, mas ostentava no rosto a expressão de horror de quem tentou desesperadamente puxar o ar até seu último segundo. Sufocou. Filmes de terror agora me parecem comédia romântica perto da imagem que vi de minha irmã gêmea já restando somente sua carcaça no quarto que dividimos desde a infância. Ou pelo menos nos períodos em que ela morou com a gente.
Mamãe cuidou de tudo, eu fiquei estática no sofá enquanto recolhiam o corpo dela, e mamãe limpava o quarto para que eu pudesse voltar a habitá-lo. Foi ela também quem saiu de casa para buscar as cinzas e escolheu a urna.
Eu só entrei na história quando a coloquei no carro, abatida, e rumei para o hospital de campanha que foi montado pela prefeitura.
Foi aí que entendi que essa guerra só é silenciosa para quem não está na linha de frente. Lá o barulho era intenso. Desde profissionais gritando uns com os outros pela força da urgência, até pacientes sozinhos em suas macas gemendo de dor, tentando puxar o ar, rezando e toda a sorte de sons que somente o caos é capaz de produzir.
Não sei se a imagem da minha irmã já tinha sido o ápice de cenas avassaladoras que poderiam me tocar, mas, apesar de toda a tristeza que me consumia, u não fiquei impressionada. Mamãe ficou em observação, e eu fui mandada pra casa. Ela era grupo de risco, e tínhamos perdido Ravena, então também não me foi surpresa quando ligaram avisando que ela estava sendo entubada, nem quando confirmaram o teste positivo.
Logo que voltei sozinha pra casa, ia à cozinha de tempos em tempos, mas passava pela estante onde agora Ravena descansa em um pequeno montinho de pó, então desisti do percurso, instalei o telefone no quarto e montei um pequeno estoque de alimentos ali mesmo, saindo para repor com alguma raridade.
Quarenta e cinco dias da internação de mamãe. Observando da minha janela a ausência de movimento, o silêncio, o luto que se abate sobre todos os prédios do quarteirão. Em praticamente todos, já morreu alguém. A gente demorou demais para levar a sério.
Pela redondeza, o barulho dos pássaros só é interrompido por eventuais sirenes ou pelos gritos desesperados de alguém que recebeu uma ligação do hospital. Fico imaginando como será minha reação quando meu telefone tocar. Eu sei que vai tocar e que a ligação me será dolorida. Mamãe está em coma.
Irônico que eu tenha compartilhado do útero dela com outro ser humano, que eu tenha nascido em uma família com pai, mãe e irmã, que nem na minha formação uterina eu tenha estado sozinha, e agora estou aqui, já sem lembrar do rosto de papai, que enfartou jovem, e sem poder esquecer de Ravena, já que a vejo toda vez que me olho no espelho.
Meus remédios para dormir já se aproximam do fim. Mamãe já se aproxima do fim, e a pandemia parece ser a única coisa que pretende permanecer por aqui por mais tempo. Nem os cães vadios mais passam pela nossa rua, que parece tirada de uma distopia qualquer. No começo, nos tempos que Ravena morria aos poucos, alguns vizinhos ainda saíam com uma desculpa qualquer; hoje, a maioria dos que saíram estão presos nessas mesmas urnas em que minha irmã, tão sedenta de liberdade, acabou confinada.
Pensei na ironia da coisa toda, porque não existe espaço mais apertado do que um caixão, e essas pessoas terminaram seus dias em um porque não suportavam a ideia de viverem confinados em suas próprias casas. Não à toa o vírus se espalhou tão rápido. Não à toa todo mundo por aqui já perdeu alguém ou mais de um alguém.
Eu não tive sintomas, mas o que ninguém fala na TV é que a sensação de sufocamento não é exclusiva dos
contaminados. Os que enterram seus mortos também se sufocam. Se sufocam na dor, na perda, no vazio, no choro que seca porque o corpo não produz água o suficiente para chorarmos todos os nossos mortos em tão pouco tempo. Estou sufocada não pelos pulmões ou pelo confinamento, mas pela impotência.
Mamãe tem um tubo enfiado no corpo para que seu pulmão não desista.
Me pergunto se ela ainda luta.
Me pergunto se eu ainda luto. Perdi as contas de quantas vezes acordei sorrindo por achar que me faltava o ar. Mas não era o vírus, era o luto. Me falta o ar porque a traqueia não consegue se dividir entre a respiração e os espasmos causados pelo choro constante.
E então fico apática. Olhando do lado de fora sem acreditar que há uma guerra. Que, em algum ponto daquele hospital de campanha, mamãe está em uma trincheira. Posso imaginá-la em um campo de batalha, mas me recuso a criar dela a imagem de um corpo entubado sobre uma cama, sem perspectiva de voltar a ter vida dentro dele.
Quarenta e cinco dias que voltei sozinha pra casa. Não ligo a TV, não vejo notícias, não sei em que ponto estamos da pandemia, nem quanto tempo falta para a quarentena acabar. Não espero que volte tudo ao normal porque já não existe mais o normal, pelo menos, não para mim, para meus vizinhos, para milhares de pessoas que seguirão em frente pela metade.
Se eu não voltar a dividir quarto com a minha irmã naquela urna que está na sala, não sei se terei coragem de me considerar uma sobrevivente. Para isso é preciso continuar vivendo, não é? Pois não acho que isso seja possível.
Entrei em um universo paralelo onde minha quarentena só terminará quando eu reencontrar mamãe e Ravena. Talvez nesse encontro eu finalmente diga a ela que beijei todos os seus ex-namorados e não apenas o primeiro.
Conto instigante!