Vitral ao Sol – Um Conto de Conceição Rodrigues

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Conceição Rodrigues é natural de Arcoverde, sertão de Pernambuco, radicada em Recife. Poeta, contista e romancista, tem três livros publicados pela Editora Patuá: Molhada até os ossos, Os dedos das santas costumam faiscar, ambos de poemas; e Deus não acudiu ninguém de contos.

A Literatura é seu propósito de vida. @cecitarodrigues   //  [email protected] 


Vitral ao Sol

É quase meio-dia, as janelas de cortinas fechadas, nas prateleiras ursos e bonecas que devem ser cobertos com lençóis, quando ouço a voz dele que vem chegando com meu pai, dê a bênção ao seu tio, querida, a bênção, tio, Deus te acompanhe e te faça feliz, anjo. Meu tio é um homem bom, paga meu colégio e ajuda meu pai desde que mamãe sumiu. Se não fosse por ele, é provável que papai tivesse ficado maluco, se não fosse ele,  o tempo parava, a roda virava triângulo, choveria de baixo para os lados e tudo desmoronaria lá em casa.

Só as drogas salvam. Só-as-dro-gas-sal-vam. – repetiu olhando fixo para os olhos verdes da terapeuta em silêncio. Sem as drogas eu não estaria aqui. Explique como é que se explica o que não tem explicação, mesmo quando temos muitas explicações. Quais são os sinônimos de idiossincrasia e iconoclasta, a senhora sabe? Tio Jamir me pediu para sentar em seu colo todas as tardes, vamos fazer a tarefa de casa desse jeito – assim – desse jeito – assim. Nem adiantou trancar a porta do quarto, pois ele sabia fazer toc-toc, vai que alguém escuta e estranha e lá irá papai chorar defronte à vitrola de novo. Pus o livrinho sem capa debaixo do travesseiro, abri a porta, voltei correndo para debaixo das cobertas, titio entrou pisando como faria uma borboleta, carregando uma  sombra encurvada. 

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São elas, somente elas que salvam. Não quero mais internações, os médicos são uns cínicos, a senhora é cínica e todos os cuidadores andam por aqui por falta de opções de trabalhos melhores, nós sabemos. Se pudéssemos estaríamos todos em Cochabamba tomando uns drinks de frutas azuis, trabalhando de guerrilheiros em Budapeste, sendo ajudantes das cegonhas, o que é um desserviço na verdade. Algum tipo de alienação é necessário para prosseguir, fechei outro livro com as folhas encrespadas e a agonia de manusear papel jornal. Os bichinhos de pelúcia sabem que sou uma safada, foi titio deixar a porta escancarada para me chamaram vagabunda, papai sempre disse que isso era uma coisa para lá de feia – ela é uma vagabunda, a fulana de tal, aquela de quem não lembro o nome, esqueça, eu reapareci e nem soube que estivesse perdida. Isso é uma coisa horrorosa! Ser vadia! Saiu pisando com os pés de tijolos de aço e bateu a porta. E eu preciso de uma lâmina, um telescópio e de um patinete com urgência.

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Parênteses são lábios para sempre, fique sabendo. Por isso os dedos e os pedaços de coxas suculentas boiando no molho de ervas, tio Jamir servido à família surda. Eu jamais desagradaria titio. Prefiro morrer escaldando em febre que oferecê-lo ao molho pardo numa mesa que tivesse preparado para isso, com a melhor louça, usando o melhor vestido, gritando no megafone MORREU FILHO DA PUTA, os familiares achando saboroso o prato bem elaborado, a carne macia, as orelhas cheias de pelo, já posso até casar, quem sabe…  Até hoje levo minhas crianças para que possam pedir a bênção ao meu tio estimado, só preciso que elas nasçam.

Bem que procurei ser crente, respondi. Talvez burocrata, a máquina de bater ponto me estrangularia decerto. A fatalidade de atrair meu tio me ensinou que todas as coisas são comuns, tudo tanto faz, todos são especiais, por isso ninguém é. E eu preciso não seduzir debaixo de uns óculos enormes e de uma burca blindada, com uns chinelinhos cor-de-rosa, sem pisar leve ou pesado, ele exigia que eu estivesse sem calcinha. Como vou viver sem uma alma de decepções sem uma mente de equívocos? Preciso anotar tudo isto para o caso de precisar depois.

Minha vida toda não passou de uma dissimulação. Sou medíocre, entende? O pó nos móveis esquecidos, até que um dia vão lá e simplesmente o removem; eu fumo ao contrário, confesso. Fale alguma coisa, sua cínica profissional! A psicóloga ia falar, toquei nela e ela se desfez em pó, tentei cheirar a mulher posta em cima de um vidrinho, minha heroína na certa, fale alguma coisa, sua piranha! Eu, num mundo de mentecaptos. Matei quem já havia morrido. Grande coisa, ela sorriu.

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Não me olhe como quem olha para um psicótico atípico. Eu escolho meu remédio de acordo com o humor que prefiro, se me permite a audácia, gostaria que fosse à Caixa Prego. Você quer colocar minha alma no microscópio, eu sei, dama da psicodramaturgia. E o que é que eu faço além de encher de band aids meu espírito de cachorro com raiva babando verde-rosado?

Librian, Carbital, Valium e finalizar com Thorazine para deixar de sentir. Em seguida junte com um pouco de álcool, escreva umas linhas de despedida, deixe descansar e após duas gerações certifique-se que o que escreveu não vale a pena e leve ao forno, sem esquecer que untar a forma com letra de fôrma é tão fundamental quanto o rato que roeu a roupa do rei de Roma, pois sem ele não haveria história. Colocamos as bonecas sentadas e elas assistiram tudo, no fim fecharam os olhinhos e as guardei nas caixas. No dia seguinte, as bonecas de olhos abertos, independentes.

Diga ao psiquiatra de merda que estou há um ano sem dormir, as bonequinhas nunca contaram coisa nenhuma, são muito discretas e educadas. A senhora se preocupa em não ficar tripolar, entendo. Só que a impaciente aqui sou eu.

As baratas mais cedo ou mais tarde vão dominar todos os planetas, criando naves espaciais, conversando; não há bombas nucleares que possam detê-las. As baratas são o futuro já hoje, meu tio me contou. Levantava para beber água da noite e elas compilavam no meio da casa e nos recantos, tocavam trombetas, e seus exércitos de planos infalíveis, comendo hambúrgueres, bebiam Coca-Cola de cloaca, assistindo sacanagens no canal fechado, vídeos que escarneciam de nós – as baratas bípedes; as bonecas, que são cheias de melindres, sentiram nojo das baratas, mas gostaram das sacanagens.

As drogas me salvaram vinte e três vezes de me matar, inclusive hoje. Ninguém reconhece. Nos dias de verão insuportável e de crianças correndo no jardim do prédio em que moro, as drogas me deram as mãos para que pudesse cortar os meus impulsos, retomando fôlego de coexistir para mim diante de mim. Me deu uma preguiça de tudo, até de morrer, a senhora acredita? Era bem possível que eu morresse de realidade, porém pago religiosamente meu plano de saúde. Ah, já sei o que colocarão no meu obituário, morreu de viver a morte, sem esquecer é claro de uma diarreia colossal, provavelmente daquela que matou Napoleão, segundo dizem. Sou uma pessoa vaidosa demais para morrer de diarreia comum, não abro mão de morrer da mesmíssima que matou Napoleão, pois assim já me destaco um pouco diante da sociedade.

Já tive uma máquina de costura. Decidi jogá-la pela porta de vidro. Os vizinhos comentavam, tomando chá e café pelo meio fio-umas cervejas-. Gostaria de não tecer mais comentários. Era uma espécie de terapia a costura.

As mulheres de cintas – entenda que não são corpetes, nem cintas-ligas, cintas simplesmente que abraçam o ventre, toda a barriga, deixando frouxos os cordões para maiores comodidades sexuais. A senhora usa corpetes e meias sensuais? A senhora sabe dizer por que a ordem do alfabeto é esta aí posta? Deveríamos nos rebelar quanto a isto, se tivéssemos um pingo de senso letrístico. A senhora consegue estabelecer, comprovando cientificamente, o motivo pelo qual acham romântico um vitral ao sol, desse mesmo que agora reflete nos seus olhos sonsos? Deveríamos nos beijar por conta disso?

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Cintos que me batem e me deixam de ancas marcadas sem consentimento. Os sintos de meu íntimo. O meu amado é meu e eu sou dele – oração para ingerir tarja preta antes de vir aqui bater este papo amistoso com a senhora.

Vou à padaria sem óculos escuros, chapéu ou qualquer disfarce e nenhuma alma falante jamais me pediu autógrafo, mesmo que eu assine uma bela coluna de arte num jornal provinciano, o que significa receber o jornal e assinar nele meu nome com a minha esferográfica da sorte e isso três vezes por vida.

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As bonecas cobertas de lençóis e me tocava na pele nervosa o dia inteiro. Minhas pernas de papel ainda tremelicam, sempre fui um proeminente fracasso. Os familiares dizem que sou chegada a dar chiliques sem razão. Concordo. O muro de Berlin segue inabalável, não há motivos para ataques ou frescuras como se eu fosse alguma perua rica, o que não sou como a senhora pode constatar pela desqualidade do meu plano de saúde.

A atual saúde de uma escritora que nunca saiu das gavetas, exceto para ir comprar jornal e assiná-lo, permitia apenas oréganos sem pizzas, já que as taxas de colesterol não concediam tal extravagância, a atual saúde de uma escritora mundialmente e intergalaticamente desconhecida me permitia pão com manteiga, se muito, depois umas folhinhas em branco para riscar. Tudo fede, catado nos sebos e no lixo e uma mania de escrevinhar o que ninguém jamais se dará ao trabalho de ler, a não ser uns amigos que tenho na Malásia, onde sou bestseller dos analfabetos aflitos, dizem que minha é escrita é fundamental, praticamente um comprimido para matar a sede.

A psicóloga não diz nada. Estende os olhos, um milésimo. Nunca diz nada. Não há nada a dizer. Mesmo quando falam litros e quilômetros de cachaça. Ela apenas, por debaixo dos seus óculos tartaruga, desejou estar com titio que tinha longos dedos.

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