Entrevista concedida à Francis Kurkievicz*
Renata Bomfim nasceu no estado do Espírito Santo – Brasil, no dia 21 de novembro de 1972, no mesmo mês e ano em que as Nações Unidas promoveram uma das maiores Conferências sobre o Meio Ambiente. Certamente este período da história influenciou e determinou, de alguma forma, o destino daquela menina. Nas suas próprias palavras Renata, agora madura e consciente de sua trajetória, se define: “Sou ativista ambiental com forte atuação na defesa da Mata Atlântica. Em 2007 criei, juntamente com o meu marido Luiz, a Reserva Natural Reluz. Nessa reserva, além da preservação ambiental, realizamos trabalhos de educação ambiental. Em 2017 transformamos a Reserva em uma Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN). Os trabalhos na RPPN foram crescendo, reunindo pessoas e, em novembro de 2019, criamos o Instituto Ambiental Reluz. Esse Instituto era um sonho que eu acalentava há muitos anos, enfim ele se tornou uma realidade graças às pessoas que aceitaram vir sonhar junto comigo e a agir, contribuindo para com a preservação do nosso planeta”. Renata também se afirma vegetariana e milita pelo Abolicionismo Animal.
Poeta, ensaísta e doutora em Estudos Literários pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), Renata Bomfim desenvolveu importantes pesquisas no campo da poesia Iberoamericana. Na ocasião, fez um estudo comparativo entre as poéticas de Florbela Espanca (poeta portuguesa) e de Rubén Darío (poeta nicaraguense). Renata também possui um diploma de bacharel em Artes pela UFES, mais tarde se especializando em Psicologia Analítica Junguiana, Arteterapia na Saúde e na Educação e em Psicossomática. Além dessa formação acadêmica, Renata fez uma formação livre em Hatha Yoga e Raja Yoga, tornando-me instrutora em processos de Meditação Tradicional Indiana.
Entre os anos de 2018 e 2020 Renata presidiu a Academia Feminina Espírito-santense de Letras (AFESL), onde ocupou a cadeira de nº 16, presidindo também a 6ª Feira Literária Capixaba, na UFES, em 2019. Foi professora no Centro de Letras da UFES entre os anos de 2016 e 2018, onde ministrou, entre muitas disciplinas, os Laboratórios de Literatura de Autoria Feminina em Língua Portuguesa e Literatura no ES.
Renata Bomfim é autora de quatro livros de poesias Mina (2010), Arcano Dezenove (2012), Colóquio das Árvores (2015) e O Coração da Medusa (2021), escreve com frequência artigos e ensaios literários que tem sido publicados em diversos periódicos pelo mundo. Há vinte anos vem trabalhando como arte terapeuta e se dedicando ao seu blog literário Letra & Fel onde, além de escrever, acolhe contribuições literárias de diversos escritores nacionais e internacionais: https://letraefel.blogspot.com/
FK – Já começo fazendo uma pergunta nada diplomática: como é ser mulher, feminista, escritora, ativista, professora, terapeuta, blogueira, artista plástica, palestrante, resenhista, e de esquerda, num mundo ainda imerso neste patriarcado neoliberal que está flertando com o fascismo? Como Renata Bomfim se autodefine?
RB – “Deixa-me, deixa-me, fonte!” / Dizia a flor a chorar:/ “Eu fui nascida no monte…/ Não me leves para o mar.” // E a fonte, sonora e fria, / Com um sussurro zombador, / Por sobre a areia corria, / Corria levando a flor”. A vó Abigail costumava recitar esses versos para mim quando eu era criança e me parece que eles acabaram se tornando uma espécie de profecia. Essa florzinha aí sou eu levada pela correnteza-vida mundo afora. Esse “ser levada pela correnteza” dá a dimensão do “ser mulher” numa sociedade patriarcal, preconceituosa e misógina, que nega, tanto ao sexo feminino, quanto às pessoas que reconhecem dentro desse espectro, o direito de serem quem elas quiserem ser. O desafio é não afogar, é resistir e construir formas próprias de ser e de estar no mundo. Minha bisavó Otília, nasceu no dia em que foi promulgada a Lei Áurea, ouvi histórias sobre ela, o bordão da sua vida era: “nasci forra”. Enfim, essa mulher que vos fala mistura o sangue de africanos escravizados, mas, por parte de mãe, sangue de colonizadores, na certidão de nascimento jaz a determinação: cor parda!
Peço licença para falar um pouquinho sobre a gênese dos meus mal-estares, e são muitos, e algumas inconformidades e revoltas que acabaram me levando para um caminho transdisciplinar de atuação no mundo. Me recordo que, na década de 1990, comecei a atuar no campo da saúde mental como artista plástica, dava oficinas de pintura. O fato de não ser psicóloga, médica, enfermeira, ou outra formação do campo da assistência, me colocou em um lugar novo, pouco conhecido pelas pessoas e ainda em processo de validação pela academia. Eu entrei no campo da saúde mental atuando no primeiro Centro de Atenção Psicossocial de Vitória, o CAPS-Ilha de Santa Maria, que na época ainda estava em processo de estruturação. No CAPS-Ilha, eu ministrei a oficina de pintura, Eliezer Almeida a oficina de teatro e Sérgio Blank a de literatura. Foi o amigo escritor Sérgio Blank quem me apresentou a obra de Carmélia Maria de Sousa. Depois de formada, atuei na estruturação de outros centros de atenção em saúde mental de Vitória destinados a crianças e adolescentes, um deles no HUCAM e outro na UFES. Essas experiências me deram segurança para abrir o meu primeiro consultório particular de arteterapia e essa se tornou a minha profissão, o meu ganha pão. Em 2000, tive a honra de estagiar no Museu de Imagens do Inconsciente, fundado pela Dra. Nise da Silveira. Paralelo ao trabalho como arteterapeuta, resgatava animais abandonados. O ativismo ambiental começou de fato em 2007, com a criação da Reserva Natural Reluz, em Marechal Floriano. Passei a ser uma ativista ambiental sem ser do campo das ciências naturais, outro grande desafio. Infelizmente, pude observar que o machismo também macula esse campo de atuação.
A ideia inicial com a criação da Reserva Natural Reluz era fazer a preservação do remanescente de Mata atlântica e abrir um ateliê, entretanto, a vivência da terra elencou novas demandas como lutar contra a atuação de caçadores, traficantes de pássaros e de plantas e extratores ilegais de palmito na floresta. Tinha que fazer uma escolha, escolhi mergulhar de cabeça na causa. E lá foi a florzinha da vovó, mais uma vez, levada para as paragens da militância ambiental. Em se tratando de meio ambiente, não tem meio termo, não existe meia implicação. Ser ambientalista não tem glamour, acredito que ninguém escolhe ser persona non grata e estar sempre sob os olhos da bandidagem, especialmente no momento em que há um surto de clubes de tiros e o poder maior do estado nacional incentiva a caça. Status temerário, estamos quase sempre metido em alguma pendenga com o sistema, para quem a natureza é apenas um “recurso” a ser explorado. E tem mais, mexeu com os meus macacos-prego, mexeu comigo, é chamar para a briga! O envolvimento com a causa ambiental exige uma espécie de desprendimento das coisas individuais e um foco no coletivo, pois, desarmados, colocamos o nome nas denúncias e a cara nos jornais. Desde que esse governo genocida subiu ao poder, liberou as armas e incentivou os clubes de tiros a situação se tornou pior e, no meu caso, tive que ingressar com mais força na militância junto ao poder público contra o desmatamento e a caça nas áreas naturais.
Já sofremos represálias de caçadores. Mas, onde entra a literatura nisso tudo? O amor pela leitura nasceu bem cedo, nem lembro, mas na adolescência eu escrevia pensamentos e versos em caderninhos. Foi a paixão pela poesia, e em especial, pela poesia de Florbela Espanca (1894-1930) que, em 2006, me levou para o Centro de Letras da UFES, onde fiz o mestrado e doutorado. Nessa altura da história, já haviam se dado as mãos a artista, a terapeuta e a ativista ambiental. A pesquisa da poesia me deu o impulso para publicar a minha primeira obra, Mina (2010). A consciência de gênero eu agradeço à literatura. Eu vivenciei muitas situações de violência e preconceito na vida, mas foi a partir da imersão no universo literário que reconheci que o feminismo era uma necessidade íntima e de sobrevivência.
Outras experiências de vida me impactaram bastante e podem ser rastreadas no que escrevo.
Bem, depois de rolada como um seixo, levada pela correnteza-vida, me percebo uma pessoa aberta, agradecida e com muita vontade de compartilhar, parceriar… Nesse momento crucial da história, eu me posiciono abertamente contra esse governo de morte que odeia a cultura, os artistas, a natureza, as comunidades tradicionais e originárias, as mulheres, os negros, os brasileiros em geral. Dentro do campo literário sou rechaçada por uma ala bolsonarista que tentou fazer da minha vida um inferno, mas não conseguiu graças a fé que tenho em Deus. Eu busco dar a minha contribuição, mesmo que bem pequena, ajudando na preservação ambiental e atuando ativamente em coletivos ambientais e culturais. Tudo o que sou é coisa política e converge para a poesia, espero sempre atuar como quem planta um jardim ou escreve uma carta de amor.
FK – Este prolongado estado pandêmico, incrementado por uma necropolítica estatal, insuflado por uma ameaça de guerra atômica, tingido com matizes crepusculares cármicos… como isso afeta o poeta que você é? Como você tem passado esses últimos dois anos de espantosos “plot twist”? Algo te surpreendeu ou a intuição do poeta já colocava tudo em perspectiva?
RB – Penso que a visão de mundo e a relação da pessoa com o sagrado são determinantes para o enfrentamento das situações da vida. Eu não tenho religião. Eu nasci inserida numa religião que só fez me oprimir, acabei encontrando Deus longe dos espaços dogmáticos. O cristianismo esotérico, o budismo, o hinduísmo e o kardecismo me ajudaram muito a resolver a inquietação do espírito e percebi que Deus está logo ali, virando a esquina, embaixo da marquise, dormindo sob um pedaço de papelão com febre e fome, no orfanato, no olhar desesperado do animal vítima do tráfico, na árvore que é cortada porque “suja a calçada”.
Quando a pandemia chegou, o meu Ateliê de arteterapia estava a todo vapor com as oficinas de bordado mexicano, eu precisei fechá-lo. Foi difícil em se tratando de grana, mas o sofrimento e as dificuldades de uma grande parte da população foi tanta que não posso me queixar, tive teto e alimento. Durante o período inicial da pandemia eu escrevi textos esparsos, mas não cheguei a elaborar nenhum livro.
Tenho certeza que a fé me ampara, e acredito que ela me ajuda também a ter uma revolta qualificada. Eu não quero criar uma bolha e viver nela, acredito que isso faria a minha encarnação atual um desperdício, por isso eu direciono a minha revolta como uma flecha, e agora ela está direcionada para a política, como você bem destacou, para essa necropolítica que usa o santo nome do Cristo para expropriar e matar. Fizeram uma “marcha pra Jesus”, aqui em Vitória, com um carro alegórico que era uma pistola gigante, aprisionaram e pintaram pombos de verde e amarelo para soltar no evento que arrastou pessoas que se autodenominam “de bem”, isso me revolta e me pergunto como essas pessoas não enxergam que esse governo trabalha para acabar com a saúde, com a educação, que assassina indígenas, ataca a ciência, grila terras, desmata, enfim, desgraça pouca é bobagem! Tudo isso me afeta enormemente, ver pessoas sofrendo, perdendo os empregos, o número assombroso de mortes, tragédia orquestrada não apenas por incompetência e ingerências destes fascistas, mas pelo desprezo que ele tem pela vida e pelas pessoas, em especial pelas pessoas pobres.
Confesso que houve momentos bastante difíceis e que, enquanto poeta, a minha antena captou muita coisa que, apenas agora, em 2022, venho elaborando em uma nova obra. Quem acompanha a minha escrita desde o Mina, pode observar algumas mudanças estruturais, tanto que o meu livro mais recente, O Coração da Medusa (2021), flerta com a prosa e o teatro. Não se trata de nenhuma inovação literária, pois, os textos contemporâneos são afeitos ao hibridismo, mas é uma inovação dentro da minha produção.
FK – Como professora e escritora você tem um trânsito livre no “mundo sem fronteiras da literatura”, quais suas impressões sobre a poesia atual? Quais poetas capixabas devemos prestar mais atenção? Que poéticas o Brasil está revelando? Quais poetas latino-americanos estão fazendo a diferença neste momento?
RB – Posso dizer que tenho algum trânsito, mas esse ainda não é totalmente livre. Veio agora à mente uma frase da Clarice Lispector: “Liberdade é pouco, o que desejo ainda não tem nome”. As instituições culturais continuam patriarcais, e eu preencheria sem dificuldades páginas contando histórias que vivenciei como presidente da Academia Feminina Espírito-santense de Letras. A minha gestão, por ser progressista, foi odiada e muito combatida, o que incluiu uma denúncia de roubo da Lei Rouanet à Polícia Federal [enfim, a denúncia provou-se ser caluniosa]. Dentro das academias de letras há muitos escritores (as) que apoiam esse governo fascista e optei por deixar de frequentar alguns espaços. Como podem ver, o trânsito, nesse nosso mundinho que adoramos, nunca esteve tão tenso. Eu tenho uma visão clara do lugar que ocupo como mulher-escritora e como intelectual, hoje, esse lugar é o da resistência.
A poesia contemporânea revisita o passado de forma irônica, o cânone se viu obrigado a dialogar com a periferia e muito dessa transformação graças às mulheres escritoras. A transgressão feminina renovou a literatura e está acendendo uma luz nos variados campos do saber humano.
Observo a poesia acolhendo vozes imprescindíveis e insurgentes, como as dos grupos minoritários. Adoro os Slams e os saraus com pessoas de diferentes origens e ideias, enfim, vejo a poesia florescer, a despeito da brutalidade e ignorância desse momento.
Tem gente que nem me dou o trabalho de ler, mas há muitos escritores que admiro, alguns já consagrados e outros ingressando agora no universo literário, Por exemplo, me encantou pela leveza da linguagem o livro de estreia da Vitória Sainohira, “Meu Cântico à Natureza”.
A lista de nomes de escritores que acho muito bons no ES é larga, citar alguns me obrigaria deixar de citar outros. Mas vou compartilhar poetas que li mais recentemente: Anaximadro Amorim, Lívia Coberlari, Juanne Vailante, Stel Miranda, Mara Coradelo. Eu destacaria o trabalho dos Slams Nísia e Marielle e dos coletivos de letras. Adoro ouvir a Jupter recitar. Há ainda uma turma muito bacana divulgando a poesia produzida no ES, como os amigos Saulo Ribeiro, Lia Noronha e Henrique Paris. O Letra & Fel, meu blog literário, on line desde 2007, também divulga a prata da casa e escritores de outros estados e países. O nome Letra & Fel surgiu porque ainda há quem acredite que sou um docinho, imagina, uma escorpiana…
Lançamentos de livros, saraus, feiras e festivais de poesia são ocasiões propícias para se conhecer gente nova e interessante.
Nas várias edições do Festival Internacional de Poesia de Granada, conheci, além de poetas de países da América Latina, entre eles vários que tem levantado suas vozes em prol da democracia, como os nicaraguenses Francisco De Asís Fernández Arellano, Glória Gabuardi, Nicasio Urbina, Silvio Ambriggio, Gioconda Belli; os amigos poetas mexicanos Silvia Siller e Aaron Rueda; o amigo dominicano radicado em Nova York, Rei Berroa e ainda os poetas Aleyda Quevedo Rojas, do Equador; Consuelo Hernandez, da Colombia; Lety Elvir, de Honduras, e muitos outros escritores, muitos deles publicados no Letra & Fel. O meu tradutor para o espanhol, Pedro Sevylla de Juana, um amigo muito querido a quem sou eternamente grata pela parceria, também possui uma produção profícua na poesia.
Poetas brasileiros são muitos e muitos muito bons! O poeta Antonio Miranda representou o Brasil comigo na FIPG, gosto muito de sua poesia, e tenho dialogado com amigos poetas de outros estados como o Remisso Aniceto, de São Paulo, o Fábio Mário da Silva, de Pernambuco, entre outros.
FK – Como Renata Bomfim compreende a Poesia? O que te move para a escrita? Quais ideais, necessidades, perspectivas poéticas, poetas, temas abastecem o Coração da Medusa?
RB – Gosto muito da reflexão de Octávio Paz sobre a poesia: “conocimiento, salvación, poder, abandono. Operación capaz de cambiar al mundo”. A poesia é um gênero discursivo que permite ao ser humano comunicar o incomunicável, até mesmo na prosa do dia-a-dia, por exemplo. Dizer do amor, que é “um não querer mais que bem querer”, ou “que seja infinito enquanto dure”, só a poesia mesmo. Eu vejo a poesia como uma linguagem construtora de pontes e facilitadora do diálogo em variados níveis.
O Mina e o Arcano Dezenove são obras que nas quais eu estou inteira, derramada, já a partir do Colóquio das Árvores eu comecei a dedicar mais atenção a estrutura do poemário, esta tentativa pode ser observada no livro O Coração da Medusa.
Sou movida por tudo o que me afeta, ou seja, procuro não ser uma pessoa indiferente, tenho medo de como na atualidade até mesmo a barbárie periga se naturalizar, me afeta, inclusive, o mundo invisível, onde habitam duendes, fadas e incontáveis espíritos. Sempre fui uma mulher guiada por ideais, coisa minha, chamado interno que não responde a nenhuma obrigação. Não digo isso com arrogância, às vezes penso que seria interessante ter uma profissão única e focalizar a minha energia nisso, mas não consigo, faço duas, três, quatro coisas ao mesmo tempo. A necessidade é uma só, escrever, dialogar, com relação à publicação, vejo como uma consequência desse processo.
FK – Como você decide o que, como e quando escrever? Qual a sua rotina literária? Como você organiza as ideias para o poema? Há diferenças no teor da primeira ideia que impulsiona seu esforço e o resultado final? Qual o seu método de trabalho literário? Como você planeja e nomeia seus livros?
RB – Não é nada muito pensado, depende do quanto uma imagem, experiência ou ideia me impacta, posso produzir, também, respondendo a algum edital ou evento. São propostas diferentes de escrita com resultados, igualmente diversos. Eu utilizo uns caderninhos de rascunho e o bloco de notas do celular para anotar versos e ideias que, posteriormente, vão sendo burilados. Geralmente, a ideia inicial é indicadora do caminho por onde o poema poderá seguir. Eu sou indisciplinada e bagunceira, não tenho um método definido, mas, pelo menos uma vez na semana, eu dedico um tempo à poesia. Às vezes tenho a sensação de que os textos vão ganhando vida própria, chega um momento que o próprio corpus passa a indicar os melhores títulos e sequências.
FK – Você é autora com uma escrita diversa, escreve desde artigos e ensaios (publicados tanto no Brasil e quanto no exterior), e também mantém o blog LETRA & FEL, tem em seu currículo quatro livros de poemas, Mina (2010), Arcano Dezenove (2012), Colóquio das Árvores (2015) e O Coração da Medusa (2021). Nesses quatro livros, cada qual tem uma personalidade bem distinta, possui um design temático bem delineado, inconfundível, ao mesmo tempo em que um fio temático peculiar transpassa-os e une todos eles, como uma missanga multicolorida. Como você pensa seus livros? Como você estabelece o que cada um deve representar e discutir? E como você consegue reuni-los num conjunto articulado, como num mosaico significativo?
RB – Descobri, com o tempo, que publicar livros físicos para mim não é uma necessidade, talvez por ter o Letra & Fel, onde compartilho os meus textos há quinze anos. Há ainda a questão da grana, é caro publicar e grande parte da publicação fica encalhada nas estantes. Eu fico tão feliz e muito surpresa quando alguém diz que lê os meus poemas, ou quando vejo uma escola estudando minha “grande produção de quatro livros”. Quando eu era adolescente eu sonhava que um dia escreveria um livro, então, acho que superei as minhas expectativas. Conforme antecipei numa resposta anterior, na época do Mina, eu costumava reunir os poemas sem preocupações maiores, como um sentido de unidade temática, por exemplo. A produção inicial é bastante musiva. Depois da publicação do Colóquio das Árvores eu passei a curtir mais projetar a obra, obviamente, resguardando um espaço para os poemas mais viscerais, revoltados e cheios de sentimentos que vão aflorando com as vivências do dia-a-dia.
FK – O Coração Da Medusa, cuja temática problematiza as questões femininas, é uma edição bilíngue – português e espanhol – o que te levou a realizar uma edição em duas línguas? E por que o espanhol? Como foi essa parceria com o professor Pedro Sevylla de Juana? E como tem sido a recepção dos leitores?
RB – Eu sempre fui apaixonada pelos mitos, fiz formação em psicologia analítica junguiana e toda a minha prática clínica se assenta sobre essa abordagem, embora tenha estudado também a psicanálise freudiana, que também utiliza muito os mitos. Então, desde a minha primeira obra publicada, utilizo a linguagem dos arquétipos para tratar vários temas. Há dois personagens que me encantam, um deles é o Frankenstein. Quando fiz a minha dissertação de mestrado eu construí uma ideia do feminino em Florbela Espanca como esse ser fragmentado, ansiando por sobreviver e amar, mas fadado à morte numa sociedade patriarcal. Outro personagem que amo é a Medusa. O Ítalo Calvino escreve um ensaio onde ele fala sobre o poder criador da Górgona. É do sangue da cabeça da Medusa que nasce o Cavalo alado Pégaso, foi graças a ela que Perseu conseguiu derrotar inimigos e monstros e conquistar o seu amor. Ser ctônico, com a cabeça adornada com serpentes, e que sofreu variadas formas de violência e injustiça. Esse livro foi escrito numa época em que fiz várias viagens por Portugal, Espanha e Nicarágua por conta da minha tese de doutorado e participei dos Festivais Internacionais de Poesia de Granada, na Nicarágua. Eu senti uma identificação muito grande com a terra natal do poeta Rubén Darío, meu objeto de pesquisa, juntamente com Florbela Espanca, e fui acolhida pelos poetas de lá com tanto carinho que cheguei a representar o Brasil nesse Festival, considerado o maior da América Latina por seis vezes, sendo que agora recebi mais um convite, para o Festival de 2023. Fiz vários amigos poetas e pesquisadores na Nicarágua e a eles dedico os poemas do livro.
Com relação ao meu tradutor, Pedro Sevylla de Juana, o conheci por intermédio da prof.ª Ester Abreu. Ele era um leitor assíduo do Letra & Fel e se sentiu tocado pelos meus poemas, passando a traduzi-los na medida em que eu os escrevia. Daí nasceu a amizade. Pedro é um escritor com uma obra monumental, tem vinte e cinco livros publicados e é uma pessoa que tem muito interesse na cultura de outros países. Ele se encantou com a cultura capixaba, fez amizade com vários escritores e hoje é escritor correspondente na AEL. Eu estive com Pedro, Ester e Karina Foringher em Madri, e depois o Pedro veio passar uma temporada aqui no Espírito Santo. O Coração da Medusa foi uma obra construída a partir dessa parceria e diálogo. É um livro híbrido, experimental e que brinca e manipula mitos e símbolos da religião. O livro teve boa aceitação junto ao público capixaba e boa acolhida por parte dos colegas escritores de fora do Brasil, inclusive na comunidade hispanohablante que vive nos Estados Unidos.
FK – Essa pergunta eu faço para a acadêmica Renata Bomfim: Você entende que a ciência dessacralizou o poético? As escrituras cibernéticas inauguram uma pós-poética? O autor cibernético [algorítmico emulador – a nova tendência literária] matou o autor físico, orgânico, real? A linguagem já não é mais uma virtude e privilégio humanos? O que seria uma poesia pós-poética?
RB – Sim, entendo. Mas vou além, a contemporaneidade dessacralizou tudo o que há, e com a poesia não foi diferente. O contemporâneo é o lugar de todas as contradições e nele as sensibilidades são mutantes, cindidas, fragmentadas, há a desconstrução de mitos e de narrativas, enfim, as aparências sobrepujaram a essência. É por isso que o eu lírico surge como um anti-herói em busca de si e de sentido, bem como, empenhado a gritar as suas verdades, mesmo que essa ousadia lhe custe algo. Minha poesia pretende ser revolucionária, nada mais fora de moda nos dias atuais, mas, sigo enunciando e apostando nas utopias. O autor físico, “real” interessa bastante, mas ele surge no cenário de forma performática e variados aspectos biográficos podem, sim, ajudar a compreender a obra. Esse sujeito esvaziado da escrita busca preencher-se: religiões pentecostais, esoterismo, modas, etc., eis que diante desse cenário, a linguagem emerge como uma possibilidade de emancipação. Gilbert Durand afirmou que ”representar a angústia existencial já é um meio de exorcizá-la”. Tomemos como referência a poeta Hilda Hilst, que possui uma escrita marcadamente pós-moderna. Quando perguntada sobre o que buscava na sua poesia, ela respondeu: “Deus”, e completou que toda a sua produção, narrativa, teatral e poética é sempre poesia. A poesia pós-poética, para mim, seria a busca do que, na minha produção, chamo de “Isso”, ou seja, do indizível que fica guardado no interior da palavra, como uma semente, poesia que busca aglutinar o que foi estilhaçado e despertar,− “revelar”−, esse olhar que a ciência negou.
FK – O livro de poemas que não ganha resenha e nem destaque nos meios de comunicação é um livro que não existe, não tem importância? Até que ponto a resenha literária colabora na cristalização do livro de poemas? A resenha é um instrumento ainda necessário num mundo regido pelas redes sociais?
RB – Todo livro existe a partir da sua inegável materialidade. Há, também, vozes sempre prontas para enunciar-se no momento em que esse for lido, independentemente de ser um livro conhecido, ou desconhecido. A resenha, indiscutivelmente, é uma ferramenta importante para a divulgação da obra, mas não apenas isso, ela também abre a possibilidade de que a obra seja vista pelo olhar de outrem. Ou seja, a resenha ou o texto crítico exerce uma sedução sobre o público que pode ser um fator determinante para que esse a adquira e leia.
Acredito que há algo que ultrapassa a publicidade, algo não tão valorizado nos dias atuais, e que fará que esse texto continue vivo, esse elemento é o que essa obra antecipa de futuro. Cito, como exemplo, a poesia de Florbela Espanca. Na sua época, década de 1920, seus livros foram recebidos de maneira fria pelos críticos, ao passo que uma outra escritora portuguesa, hoje esquecida, conseguiu a incrível marca de dez reedições. Como explicar? A escritora do best-seller fazia poemas que louvavam a família, o governo, as qualidades e prendas das “boas esposas”, ao passo que Florbela cantava o corpo vivo, desejante e desejável da mulher, bem como, lamentava o seu destino numa sociedade patriarcal, o que fez com que durante muito tempo fosse rotulada como a escritora melancólica. A Estética da Recepção é uma teoria que explica bem esses fenômenos. É por isso que sempre pedimos aos amigos escritores que escrevam uma notinha sobre o livro nas redes sociais, publicamos textos críticos em sites, revistas e jornais.
FK – Você tem uma grande experiência com a comunidade literária latino-americana, participa de muitos festivais de poesia, congressos, encontros, etc., como se dá essa relação com nossos hermanos? Como eles te recebem, como nos enxergam? Você se dedica à tradução dos nossos colegas latinos? Quais?
RB – Quando comecei a pesquisar a poesia de Rubén Darío no doutorado de Letras da UFES, observei a inexistência de obras atualizadas sobre o poeta na biblioteca da Universidade e a quantidade escassa de materiais sobre ele no Brasil. Fiz as malas e fui para Nicarágua em busca de materiais recentes e de compreender melhor quem era esse que é chamado de “Cisne da América” e considerado o fundador do modernismo hispano-americano. Chegando na Nicarágua, descobri que Rubén Darío não era apenas um poeta, mas herói nacional. Vi sua foto estampada nas casas, vários monumentos e me deparei com um povo alegre, hospitaleiro e fanático por poesia, enfim, me senti em casa. A Nicarágua realizou, durante vinte anos, o maior festival de poesia da América Latina, cada edição recebia em torno de 200 poetas de variados países. Em 2013 visitei o país pela primeira vez e assisti ao Festival, em 2014, convidaram o Ferreira Gullar, mas ele não foi porque estava doente, então me convidaram. No ano anterior, 2013, o poeta Thiago de Mello tinha ido representar o Brasil. Tive a alegria de conhecer pessoalmente o Ernesto Cardenal, de quem sou leitora há muitos anos. Nossos Hermanos tem muito interesse pelo Brasil e fui tratada com muito carinho e respeito. Acabei visitando o país mais três vezes e acabei montando uma biblioteca com um acervo bastante amplo sobre o poeta. Lembro que uma vez eu estava voltando para o Brasil com muitos livros e a moça do aeroporto perguntou o que eu estava levando, eu disse que carregava os objetos mais perigosos do planeta, ela arregalou os olhos e a piadinha me fez ter que abrir a mala. Participei, na Nicarágua, também, do Festival Internacional de Poesia de Masaya. Depois de 2014, representei o Brasil no FIPG mais cinco vezes. Infelizmente, o governo ditatorial de Daniel Ortega, cancelou a pessoa jurídica do Festival, isso acrescido da perseguição sofrida pelos poetas que são importantes militantes contra essa ditadura. Em 2023 a FIPG acontecerá no Panamá, e eu já dei o meu aceite para o convite, estou ansiosa para reencontrar tanta gente querida.
A participação nos Festivais de Poesias permitiram que conhecesse muitos escritores e ficasse um pouco conhecida. A amizade fomentou a troca e passei a publicar vários poetas estrangeiros no Letra & Fel e a ser publicada por eles nos seus países. Cheguei a receber o convite para um Festival de Poesia no Japão, mas acabou que não pude ir. Por tudo isso, por esse carinho e pela admiração recíproca, eu decidi dedicar O Coração da Medusa ao povo nica, e tive a alegria de ter a obra prefaciada pelo grande poeta e amigo Francisco de Asís Fernandez Arellano, o Chichi. A Nicarágua é um país marcante e de muitos contrastes, certa vez o escritor Julio Cortázar visitou o país e desse encontro nasceu a obra Nicarágua tão Violentamente Doce.
Com relação à tradução, ainda não arrisquei transitar por essas paragens.
FK – Você tem uma forte presença política no Espírito Santo, como ativista do meio ambiente, defensora da Mata Atlântica e dos animais, mantém uma RPPN – Reluz – por 15 anos, como é ser uma ativista numa urbanidade tão inconsciente, consumista, concupiscente? Como os políticos da sua cidade te veem e te compreendem? As perspectivas para o setor das RPPNs são favoráveis? Ser ambientalista e defensor dos direitos da natureza é uma atividade perigosa? Conte-nos um pouco dessa corajosa experiência.
RB – Eu milito por necessidade, podem acreditar que gostaria muito de estar deitada na rede vendo os macacos-prego fazendo algazarra nas árvores, mas não é possível um descanso prolongado. Desde que criei a Reserva, em 2007, foi necessário afirmar a posse do território, que antes era terra de ninguém, frequentada por caçadores e traficantes de animais e plantas. É uma tensão, um desassossego. A minha chegada na militância ambiental capixaba também incomodou alguns ativistas antigos que se sentiram “ameaçados” por uma mulher que sabe falar e escrever, já sofri variadas formas de preconceito e represálias ao meu trabalho. Graças a Deus, também tenho encontrado pessoas maravilhosas, apoiadoras e dispostas a ajudar e temos feito um trabalho de sensibilização junto aos políticos para a causa ambiental.
Eu sou filiada ao PV há alguns anos e decidi me candidatar a vereadora na última eleição, mas acredito que a minha proposta de trabalho foi incompreendida por alguns e rechaçada por outros: projetos sustentáveis para a cidade, com foco em economia de água, educação ambiental, criação de meliponários urbanos como forma de preservação das abelhas e geração de renda, abolicionismo animal, vegetarianismo, estado laico, enfim. Os políticos me reconhecem e respeitam como ativista ambiental dentro do terceiro setor, mas sabem que com as pautas que defendo fazem com que as minhas chances de ocupar um espaço nos poderes sejam muito pequenas.
Após 15 anos de trabalho na Reserva Natural Reluz, nós criamos o Instituto Ambiental Reluz, que atua com preservação, educação ambiental e bem-estar animal. Às vezes é desesperador ver o desmatamento avançando sobre o restinho da Mata Atlântica, a gente grita, denuncia para o MP, faz o que pode, mas a gente pode pouco frente ao poderio econômico. A violência para com os animais, especialmente depois que o abominável liberou as armas, cresceu imensamente. É um desgosto ver abrir tanta loja de armas e clubes de tiros.
Acredito que grande parte dos políticos não compreendem bem as motivações dos ambientalistas, eles ainda tem um olhar para a natureza do ponto de vista antropocêntrico, ou seja, tudo o que existe é para servir as necessidades do ser humano: a floresta, os animais, a água, o ar, os minérios, etc., eles esquecem que há outras espécies que também necessitam de território, alimento, água, etc., e que essas espécies têm direito à existência e à vida. Parece tão obvio, Não é? Mas, quando defendemos um animal ou uma árvore riem na nossa cara, nos chamam de ingênuos, e se esse discurso vem da boca de uma mulher soa afetado e romântico.
A RPPN é uma modalidade de unidade de conservação que deveria ser mais valorizada, pois ela garante uma economia enorme para o poder público, além de ser uma das melhores formas de se preservar a Mata Atlântica, visto que 80% do remanescente desse bioma está em terras de particulares. O desgoverno atual trabalha contra o meio ambiente, nem preciso ir a fundo nesse assunto, está aí para quem quiser ver.
É perigoso ser ambientalista no Brasil. Hoje eu soube que os proprietários de uma RPPN em Santa Catarina foram alvo de tiros, tenho uma amiga RPPNista no Rio Grande do Sul que vive lutando contra invasores nas áreas naturais, outro amigo RPPNistas do Rio Grande do Sul escapou de duas emboscadas, quase morreu. Nesse momento, em Santa Teresa (ES), temos ambientalistas sendo ameaçados por defender o remanescente da Mata Atlântica contra o avanço imobiliário desenfreado e irresponsável. Estamos botando a boca no trombone como forma de proteção, e se há ameaças denunciamos.
FK – Com o avanço cobiçoso das megacorporações estrangeiras sobre a Amazônia, que buscam rapinar as commodities de países autossuficientes como o Brasil, você acredita que a “nossa governança federal” cederá a soberania da Amazônia para os gringos? Como você compreende os movimentos geopolíticos, a violência do globalismo sobre as nações frágeis, a mudança da hegemonia econômica do ocidente? A ameaça de guerra entre o ocidente e o oriente? A humanidade subiu ao banco dos réus?
RB – Na medida do possível tenho acompanhado o que acontece com outros RPPNistas pelo Brasil, inclusive o que vem acontecendo na Amazônia. Me recordo agora que a irmã Cleusa Carolina Rody, freira nascida em Cachoeiro de Itapemirim, e cotada para se tornar a primeira santa capixaba, foi assassinada defendendo os índios na Amazônia.
A Amazônia é um mundo de biodiversidade, mas muita gente desconhece que embaixo das centenárias copas verdes, há comunidades que há séculos ocupam esse território preservando-o. O “avanço cobiçoso” começou em 1500 e nunca parou, o Brasil é um paraíso, por exemplo, para traficantes de animais, contravenção que envolve muito dinheiro, o mesmo acontece com madeira, plantas, etc. Acredito que, com o governo atual, questões problemáticas no Brasil como a demarcação dos territórios indígenas e a reforma agrária, conseguiram ficar ainda mais graves. As comunidades indígenas estão sendo aviltadas como eu nunca vi, parece que voltamos para época do Brasil colônia. Há, ainda, a criação de dispositivos legais que permitem a regularização de terras de grilagem, o desmonte da FUNAI e dos órgãos fiscalizadores, a liberação de armas, o incentivo ao garimpo, uma desgraça só.
Segundo pesquisas, cerca de 40% dos bovinos do Brasil estão em território amazônico, e quando se exporta a carne, o país exporta também água, pois, quem compra deixa de gastar esse recurso escasso no processo de produção.
A violência sistêmica que vemos no Brasil, assim creio eu, é fruto de um processo longo e equivocado de desenvolvimento, de um colonialismo que foi mudando de configuração e resultou num capitalismo selvagem criador de misérias. A guerra é um efeito colateral, consequência desse sistema, é algo normal no processo civilizatório atual, basta que olhemos a timeline da história. Desde que o ser humano passou a criar agrupamentos, a produzir e comercializar instituiu-se na base desse arranjo a escravização do semelhante e a exploração da natureza. Até mesmo a história foi manipulada de forma perversa, buscando suprimir e apagar todos os rastros de uma resistência que sempre existiu: os negros escravizados resistiram, as mulheres, os índios, enfim, mas a contemporaneidade tem posto as narrativas totalizantes sob suspeita e está havendo o rastreio e o resgates desses relatos silenciados.
Acredito, sim, que a humanidade já está no banco dos réus.
FK – Se você tivesse uma única chance de falar no parlamento da ONU, para milhões de ouvintes, alguma verdade que é salutar e radicalmente importante para você, apesar de qualquer consequência posterior, o que você diria nesta ocasião?
RB – Essa é uma pergunta difícil. Há tantos temas relevantes que merecem serem enunciados nesse espaço importante de fala e escuta. Mas, acredito que eu diria algo assim:
Senhoras e senhores, enquanto sociedade, cometemos vários equívocos no decorrer da história. O primeiro deles foi acreditar na falácia da separatividade e não percebermos que há uma interdependência entre todos os seres do planeta. Outro, não menos importante, foi acreditar em colocar a posse como destino. Não somos donos de nada, nem da própria vida, que a qualquer momento pode ser arrebatada pela morte, somos apenas usufrutuários do que temos e devemos cuidar bem do que está sob a nossa tutela. A terra, assim como o nosso corpo, é um organismo vivo, pulsante e responsivo. Assim como há febre no corpo, há febre na terra. É patente os sintomas de que Gaia necessita repouso, cuidado e amor. A ganância, o egoísmo e o ódio são, também, grandes equívocos, é o amor com febre, já convulsionando. Outro erro monumental foi pensar que o acúmulo de bens materiais traria felicidade, e não perceber que o compartilhamento é o que permite o equilíbrio de forças internas e externas no homem e no planeta. Erramos, também, quando atribuímos ao cérebro e a mente o domínio das ideias e o poder das decisões. Todos os órgãos deveriam formar uma junta decisória dos caminhos individuais e coletivos a serem seguidos: o coração nunca poderia ter sido ignorado, e nem o pulmão, que quando adoece, indica a necessidade de mudanças de rumo; os rins são grandes indicadores do nível e da qualidade das relações interpessoais, apontando a necessidade do melhoramento, ou seja, esse é um conhecimento, chamado psicossomática, já foi validado pela ciência, mas ainda pouco levado em conta. A ignorância do ser humano sobre si e sobre o Outro, − e quando digo Outro, me refiro as demais formas de vida, e não apenas a espécie humana −, acabou fazendo com que nos tornássemos uma sociedade narcótica e desesperada: corpo individual, corpo mental, corpo social e corpo de Gaia estão sendo envenenados e mutilados. Não são as florestas os pulmões do planeta? Não são os rios o seu sangue, assim dizem os povos originários, com a sua sabedoria. A Covid-19 é fruto da ignorância da sociedade atual e uma mostra patente de que é preciso uma mudança de rumo. Está provado que o desmatamento é o maior incentivador do surgimento de novas epidemias. Em um espaço temporal de 100 anos tivemos cinco epidemias no planeta, e todas elas resultantes da ação kamikaze do ser humano sobre a natureza. É preciso evitar o desmatamento agora, para evitar novas pandemias e seus trágicos resultados! É preciso que reconheçamos o direito à vida de todos os seres que, assim como nós, são filhos de Gaia. Urge que deixemos de ser uma sociedade consumidora para nos tornarmos uma sociedade de poetas, cada qual imantando de poesias o tempo que lhe toca viver, pois, a morte é certa!
O CORAÇÃO DA MEDUSA
[poema do livro O Coração da Medusa – edição da autora, Vitória/ES, 2021]
O coração da Medusa,
(forjado na lava, cheio de fúria)
ama aquele que a busca.
A diva serpentina oferece
ao macho que penetra
na senda úmida e obtusa,
(caverna iniciática):
sedução, prazer e gozo.
Até o momento fatal
da mirada suave e íntima,
o tempo para. A virgem
quebra o silêncio sepulcral,
chocalha o guizo,
mas, ninguém testemunha
o milagre dos milagres:
a volúpia eternizada
numa estátua de carrara.
* Francis Kurkievicz é poeta, escritor e professor, natural de Paranaguá/PR. Residiu por 20 anos em Curitiba/PR onde estudou FILOSOFIA – UFPR/2002, com especialização em Yoga – UNIBEM/2010 e MBA em Produção de RTVC, UTP/2011. Foi um dos 36 pré-selecionados ao Prêmio SESC de Literatura de 2015 na categoria Conto. Publicou, em dezembro de 2020, pela Editora Patuá, o livro de poemas B869.1 k96. Têm poemas publicados nas Revistas Acrobata, Hiedra, Mallarmatgens, Arara, Estrofe e no site escritas.org – traduções na Revista Zunái, Escamandro, Letra & Fel – artigos no Jornal Memai. Em 2022 teve seus poemas publicados nas duas maiores antologias mundiais de poesia: World Poetry Tree, organizado por Adel Khosan – Dubai/EA, e Living Anthology of Writers of the World, organizado por Margarita Al – Russia; também teve seu poema CHILDHOOD IN BHARAT publicado em MA: Antologia de Poemas em Memória da Poeta bengali Kazi Masuda Saleh, feito realizado pelo poeta de Bangladesh Abu Zubier Mohammed Mirtillah, Editor e organizado. Em Vitória desde fevereiro de 2012, ministrando oficinas de Dramaturgia, Haikai e Meditação.