Maria Alice Bragança (Rio Grande do Sul, 1958). Poeta e jornalista. Graduada e mestre em Comunicação Social, foi editora de emissoras de rádio e de jornais, além de professora de jornalismo e artes visuais na Universidade Feevale, em Novo Hamburgo, RS. Tem três livros individuais de poesia publicados: Quarto em quadro, Cartas que não escrevi e Misterioso pássaro (haicais) e participou de diversas antologias e revistas on-line no Brasil, Cabo Verde, Chile, Espanha, México, Peru e Portugal. Seus poemas e haicais foram traduzidos para o aimará, espanhol, inglês e japonês. Participou, como convidada, de festivais internacionais de poesia e feiras virtuais de livros na Argentina, Colômbia, Estados Unidos, Itália, México, Panamá, Portugal, Reino Unido e Uruguai, promovidas pela Confederación Internacional del Libro, e do Festival Internacional FIP de Parque Chas, Buenos Aires, Argentina. Integra o coletivo feminista literário Mulherio das Letras. É diretora de Comunicação da Associação Gaúcha de Escritores (AGES).
CORRE UM COELHO BRANCO COM UM RELÓGIO
É preciso dizer que não se tem tempo.
Não há tempo para viver, para respirar.
Corre um coelho branco com um relógio.
Atrasado. Atrasado. Sempre atrasado…
É preciso ser ativo, produtivo.
O tempo dos relógios está sempre a passar.
É preciso dizer que não se tem tempo.
Ou ninguém vai lhe levar a sério.
O tempo é mistério. O tempo não tem dono.
Um relógio atrasado marca apenas o sono.
Nunca o sonho.
É preciso dizer ocupado, ocupado.
É preciso dizer que não se tem tempo.
Vai que alguém resolve lhe amar?
É preciso estar sempre preocupado,
ocupado.
Ou podem achar que você é o culpado
pelo mundo estar como está.
O SEXO DAS MULHERES
Os homens espiam o sexo das mulheres
E não o encontram em suas calcinhas.
Quando as penetram, também não o encontram.
As mulheres escondem o sexo em seus olhos.
O sexo das mulheres está exposto.
O sexo das mulheres balança em seu andar.
O sexo das mulheres balança em seus braços
quando acalentam seus filhos.
O sexo das mulheres não tem nome,
nem imagem, nem figura.
Os artistas não o aprisionaram em pinturas.
O sexo das mulheres está exposto,
quando se vestem, quando se despem,
no grande teatro da vida.
O sexo das mulheres elas o disfarçam.
Com maquiagem, encobrem seu rastro.
O escondem com perfumes.
O sexo das mulheres elas o recriam nos rios.
O sexo das mulheres está imerso no mar.
O sexo das mulheres é concha.
Maresia.
VÊNUS
Quanto pinto minha boca de vermelho,
penso só em te seduzir.
Assim carmim, assim vermelhos,
os lábios que entreabro,
a olhar para ti.
E a dizer me ama me ama me ama,
esse miado de mulher no cio.
Decifra-me,
ou, dis-pli-cen-te-men-te,
com meus lábios vermelhos,
te devoro.
E, NO ENTANTO, CANTA
Um pássaro canta
na noite de insônia,
um sabiá perdido
nas luzes da cidade.
Risca o céu na janela
um cigarro
lançado de outra janela,
cadente luz.
Sem desejos a fazer,
também fumo sem esperança.
Existe algum sentido?
Um sabiá perdido,
entre as luzes da cidade,
canta.
Nesta fria noite de chuva,
acalanto,
perdidos, nós dois.
E ele, no entanto, canta.
BAJO LA LUNA
Uma mulher caminha só
nas ruas de Porto Alegre,
o coração nos tímpanos.
Una mujer camina en las
calles de Santiago de Chile.
Solo la luna la ilumina.
Uma mulher caminha
na rua em Cabul.
À luz da lua,
o medo dá vida às sombras.
De qualquer arbusto,
uma ameaça.
É século 21.
Una mujer camina
en Bogotá, Colombia.
Uma mulher caminha.
Ella no desiste.
Ela insiste.
Las mujeres siguen.
Uma mulher, na rua.
Una mujer, en la calle,
bajo la luna.
A caminhada da mulher
ainda é um susto.
ESCUTAR É LENTO
Escutar é lento.
É ouvir o silêncio,
o grão na voz
o engasgo.
Escutar a falta
nos excessos,
o vazio nos objetos
acumulados,
o grito na garganta,
a amargura
na gargalhada.
Escutar-se é
ainda mais lento.
Eu tento.
DENTES E SERPENTES
Dentes e serpentes
são palavras que rimam.
Serpentes não têm dentes.
Palavras podem ser
só palavras.
Rimas não dão conta
de dizer.
E as palavras:
O que dizem?
Rumor da língua,
dientes y serpientes
rimam em espanhol.
Rimar é ter rumo?
Remar dá um rumo?
Remar ou rimar:
É uma ordem?
A palavra morder
também não tem dentes.
As palavras não têm dentes,
mas podem morder.
OUTONO
Há um poema em cada leitor.
Único. Como esta noite de quase outono.
De folhas murmurantes. Este instante.
Um céu que não se repete,
já passou.
ADÁGIO MONÓTONO
O silêncio das horas
roubou o tempo.
Um ruído despe a fresta da janela,
invade o quarto, revela o sonho,
o horário,
o cansaço,
a vida linear.
O QUE É RIDÍCULO PODE SER O AMOR
Não são as cartas de amor
que são ridículas.
Perdoa-me, Fernando Pessoa.
É o amor
que pode ser ridículo.
Sentimento meio brega
meio tango, muito drama,
assaltando a razão, a vida,
a cama.
Algum lugar comum
nisso tudo.
Esse teatro de nós,
sem público, muito púbico,
paixão em cartaz.
Tanto faz
a duração da temporada.
Vale o desejo.
Mais nada.
O amor até pode ser ridículo, mas seus versos são o oposto🥰😍Encantadores versos, poetíssima!👏🏽👏🏽