4 Poemas de Bruna Mitrano

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Bruna Mitrano, filha de camelô e neta de lavadeira, é escritora, desenhista e articuladora cultural. Publicou o livro Não (Ed. Patuá, 2016).


***
na infância o sacolejo do ônibus
me dava enjoo
a minha mãe me batia se eu vomitava
na roupa nova que custou os olhos da cara

aprende garota
pra te valorizarem
é preciso estar bem vestida

mais tarde manchas na camisa
e um objeto de remorso

você lembra com que idade
deixou de enjoar nas viagens?

você lembra com que idade
deixou de ter pra onde voltar?

gostaria que ela ainda estivesse
esperando no pé da escada

agora é o menino que suja
as roupas que puxa do varal
e resmunga quando cai
a camisa úmida na cara

agora sou eu que finjo
saber o que estou fazendo
enfiada num vestido velho
ralhando com o menino
toda tarde
o mesmo enjoo

e gostaria que ela soubesse
que ainda pulo o último degrau
inclinando o corpo pra frente.


***
a tia vilma passava a mão
no meu cabelo
e dizia tá ressecado
olhando pra minha mãe
como se dissesse a culpa é sua
com vergonha a minha mãe
comprava cremes
que não podia pagar
e vestidos com anáguas e rendas
que de alguma forma
eram os responsáveis pela palavra
que mais ouvi na infância
: crediário
nas festas as meninas
zombavam dos meus “vestidos de bolo”
e corriam umas até as outras
com sandálias de dedo
enquanto eu sozinha
num canto com cuidado
pra não sujar
aquilo que a minha mãe
levaria meses pagando
tentava esquecer
que a meia-calça pinicava
e que a sapatilha espremia
o mindinho
afinal era preciso
que ninguém percebesse
o que todos já sabiam
: eu era pobre
e comer sopa rala todo dia
enfraquecia o cabelo.


***
pouco tempo depois de a tia fátima ir morar longe
encontrei uma caixa de sapatos moleca
em que ela guardava lembrancinhas de aniversário
e fotografias de várias épocas com o ano anotado no verso

a tia fátima gostava de ser fotografada na sala dos patrões
perto de relógios grandes
os patrões eram bons e não se importavam
nem com as fotos nem com os relógios
por isso ela acreditava que ganharia um de presente
mas isso nunca aconteceu

eu também não me importava com os relógios
(embora eu não fosse patroa)
(embora eu fosse a sobrinha a filha a neta da empregada)
e nas fotografias
me chamaram mais atenção os ponteiros
que às vezes marcavam sete da manhã
às vezes onze da noite
e a passagem do tempo no rosto da minha tia
às vezes liso
às vezes enrugado

ontem soube que a tia fátima morreu
imaginei suas últimas palavras
acho que ela não teria perguntado por mim
nem por minha mãe ou pelos patrões
acho que ela teria perguntado as horas.


***
hoje limpei a casa
tirei traças das paredes e cupins
mortos do chão do quarto

a carol não conseguiu dormir aqui
não foi por causa da sujeira
foi por causa do cachorro
e porque não tinha queijo
a carol não vive sem queijo – anotar

a dona neia disse que
pra conseguir dormir
é preciso pensar pra dentro
e pensar nas coisas do dia

como a mulher que vende café na estação
penso na mulher vendendo café
na chuva ela tem uma capa azul

penso nos restaurantes baratos
nos velhos tomando sopa
com a cara perto do prato

e nos homens na calçada
mastigando as sobras com uma lentidão que
nem parece fome parece elegância

penso que os homens mastigando lentamente
as sobras sabem
que amanhã os restaurantes estarão fechados
que a mulher venderá café na estação
e que é impossível viver sem queijo.

11 comentários em “4 Poemas de Bruna Mitrano”

  1. Fabuloso talento Bruna… Fui lendo suas memorias em forma de poesia e me senti transportar por um tempo passado na minha infancia onde o mundo era diferente. Obrigado por esse momento…

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