4 Poemas de Carla Diacov

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Carla Diacov, São Bernardo do Campo, 1975. É autora dos livros: Amanhã Alguém Morre no Samba (Douda Correria, 2015/Edições Macondo, 2018), ninguém vai poder dizer que eu não disse (Douda Correria, 2016), bater bater no yuri (livro online pela Enfermaria 6, 2017), A Munição Compro Depois (Cozinha Experimental, 2018), A Menstruação de Valter Hugo Mãe (Casa Mãe, Portugal, 2017/Edições Macondo, 2020).


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havia somente uma cadeira para o casal
na cadeira se sentava a esposa ovulada
e se sentava a esposa menstruada
o homem na cadeira se sentava ereto havia
somente esta convenção entre o casal
que a cadeira fosse o rito regulador
da sujidade espécie de objeto de contaminação
das coisas mulher nas coisas homem
depois se deitavam na tão somente cama para um
nunca aconteceu a gravidez e a esposa morreu sentada
na cadeira o marido se casou de novo mas
a nova esposa trouxe junto outra cadeira e
nunca aconteceu a gravidez pensou
o marido primeiro
não usamos a mesma cadeira
o marido morreu na primeira cadeira
e a segunda esposa ficou com a casa
com a somente cama e se desfez da primeira
cadeira
um pescador comprou a cadeira por três
sardinhas magras e se sentava na cadeira
diante do mundo e exatamente do mundo se soube
cercado da áurea primeira
uma cadeira onde a primeira
e a contaminação
o pescador estava a gerar outra cadeira
a terceira
uma

filha daquela convenção primeira


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é como dormir com um pão
sobre o olho direito

acorda-se

que faz o mundo
além de denunciar o homem e a porcelana
com o café já tão frio?

que faz o dia
além de facilitar a volúpia entre pombos da mesma tonalidade?

que traz o dia
além da oportunidade em estar à pia com a faca
com a cebola
com o mapa astral?

que traz o dia
além da narração inversa do passante cheio de sinônimos na boca?


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o burro trota tão lentamente
perdido do nome gritado
carrega ovos nas mãos escondidas nas
mangas do casaco extralargo
coitado do burro com mãos
perdido da moldura antiga
pacífico de sua própria demência
bonito tão bonito pacífico tão lindo
lentamente ruma
já a casa de fé nos olhos de burro
parece um peixe coitado pacífico
tem esse jeitão de aquário trincado
gosta de cadeiras em geral
mas é boa gente
gosta de leite quente e de cadeiras
em geral
chega ao templo das irmãzinhas castanheiras do último dia
deixa os ovos no altar
faz carinho nos porcos
pega o microfone e repete
quase porque quase porque quase
tudo empilhado
quase porque quase porque quase porque

é mesmo um burro
queria ser pianista
tem muita fé quase porque tudo empilhado
mas é mesmo um lento burro de carregar ovos
pacífico todo pacífico demente e lindo
tão bonito tudo empilhado


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passo por esse casal de amantes
é como meter as mãos num balde de sardinhas
são tantas as mordidelas
estou ferida
não é mortal
passei por aquele casal de amantes
foi como meter num balde de sal
estraçalhadas
as mãos
são tantas as sardinhas
como corta o sol
nem meio gato à vista
como corta a luz
como corta o navio
são tantas as escamas
é como meter as mãos
são tantos os braços
nem meio gato
nem meia língua
nem meio mal


*Respectivamente, poemas dos livros A Menstruação de Valter Hugo Mãe, A Munição Compro Depois e Amanhã Alguém Morre no Samba (os dois últimos poemas).

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