Fabiane Marques nasceu em 2003, na cidade de Macaíba no Rio Grande do Norte, onde até hoje reside. É poeta, professora. Integra coletivamente o livro Carolinas: a nova geração de escritoras negras brasileiras, organizado pela FLUP – Festa Literária das Periferias (Bazar do Tempo, 2021) e a zine online Sutura (2021), organizado pelo Sarau das Minas Natal. Além de ser autora da zine de poesia Colo Ancestral (2021), dedicado à memória e à ancestralidade. Leitora de Carolina Maria de Jesus e Conceição Evaristo, atualmente cursa Letras – Língua Portuguesa na UFRN. Ministra oficinas de poesia e fanzine. No ano de 2023, lançou o seu primeiro livro de poemas chamado Rastros d’água, pela editora Mondru.
DILÚVIO
a chuva forte que abria caminhos
e escoava pelo telhado
era o som do feijão verde debulhado
caindo na bacia.
as mãos enrugadas responsáveis pelo dilúvio
eram as mãos de minha avó.
a senhora das águas salgadas
que nos olhos jorravam um mar-céu
em rochas-sinais abaixo de seus olhos.
o dilúvio na bacia cessou
e passaram a estar em seus olhos.
ao fitar para o além
e reviver memórias de um cotidiano de 40 anos.
feijão verde fresquinho
comprado na feira de sábado
ia cedo para garantir o almoço.
na área de casa
não debulhava apenas feijão
debulhava lágrimas e lembranças
debulhava lágrimas e afeto
debulhava lágrimas e alegria.
ao reviver lembranças do filho
10 anos depois do marido
e no hoje
ao fitar a neta crescida.
todo sábado, na bacia chove
feijão verde de lembranças.
CHAMEI PELA FELICIDADE
Ayô do iorubá significa felicidade.
chamei pela felicidade
e ela veio até mim.
– Ayô, Ayô, meu filho
entre pra dentro de casa
que tá chovendo.
– Ayô, Ayô
tenha cuidado, meu filho
vá comprar um açúcar ali pra mim.
– Ayô, meu passarinho
eles não querem que a felicidade voe alto
mas você há de voar.
– Ayô
não corra!
teu corpo preto é suspeito
tua pele veste, queima, incendeia.
– Ayô
eu te disse menino!
– Ayô, Ayô, Ayô…
e ouço os murmúrios “ele era só um menino”.
no ventre, no sonho, no chão, no céu, no mar
Ayô a todo ciclo, todo novo pisar
desprende-se e volta até mim.
“a gente cria filho mundo não adianta prender não”
apesar das lágrimas salgadas
posso dizer que a felicidade habitou em meu ventre.
Ayô desprendeu-se de seu corpo
mas ainda habita em mim.
PAREDE AMARELA
na casa do meu bisavô fulô
a parede da sala se faz sol
é amarela
é superfície ondular que se faz santuário
preenchida por quadros
de mortos-vivos encaixotados
em molduras retangulares
um relógio
e outros nove calendários.
sempre me questionei o porquê de tantos calendários
expostos e escondidos por trás dos quadros e das coisas.
quando finalmente indaguei a minha avó
ela não soube me responder.
acho que tentaram moldurar a vida e o tempo
mas o que ficou moldurada foi a saudade.
DESERTIFICANDO LEMBRANÇAS
vovó sempre me dizia:
“isso daqui tudo, minha filha, era água.
tomei tanto banho aqui.
vinha com mamãe pra lavar roupa.”
desertificando lembranças
dos tempos de cheias
de quando “lagoa grande” e “lagoa do canto”
não era só um nome.
as águas que um dia
cobriram os pés miúdos de minha avó
hoje não existem mais.
a terra se fez pele seca
uma vez por outra é que o céu chora de saudade
umidificando o rosto dos que ficam.