5 Poemas de Clarissa Macedo

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Clarissa Macedo (Salvador/BA), doutora em Literatura e Cultura, é escritora, revisora, agente cultural, editora, pesquisadora e professora. Apresenta-se em eventos pelo Brasil e exterior. Integra coletâneas, revistas, blogs e sites. Publicou O trem vermelho que partiu das cinzas, Na pata do cavalo há sete abismos (Prêmio Nacional da Academia de Letras da Bahia, traduzido ao espanhol — Espanha e Peru), O nome do mapa e outros mitos de um tempo chamado aflição, A casa mais alta do teu coração (Prêmio Biblioteca do Paraná) e Missal ou o livro das falenas. Integrou o Circuito de Autores, do Sesc. É a idealizadora do Encontro de Autoras Baianas e do Sarau Cartografias.


Espículo
 
 
Onde eu estava?
Quem era quando, desavisada,
olhava de longe o percurso dos anos?
 
Todos sabem da morte,
e dizem dela com intimidade.
 
Hoje eu a topo de frente,
como um cão olha a tarde
como um pássaro que, sísmico,
pousa nas remotas asas. 
 
*****
 
Center society 
 
 
Nascemos divididas:
elas de pele alva, 
eu, mestiça.
 
Eu venho da terra, das madeiras,
de um curtume de pétalas
e morei na copa, chão abafado.
 
Elas, vêm das casas de vidro e aço
da cama que me roubaram
e que só há pouco soube que me pertencia.
 
Assim viemos,
pela polis cindidas, pelo mato,
pelos grãos de veneno da mandíbula 
a cada nota cravejada nos malls da vida.
 
*****
 
Surpresa 
 
 
Se fores boa menina 
dou-te um periquito azul 
eu fui boa menina 
e sem querer abri a gaiola 
se tivesses sido boa menina 
o periquito azul não tinha fugido 
mas eu fui boa menina
Adília Lopes
 
Não fui a garota que todos esperavam
[porque a mim nada foi creditado]
— “Será igual ao pai”, diziam
[aquele que me foi(-se) tirado].
Não fui a boa menina,
mas uma paisagem caricaturada:
por fora, o avesso, a penúria, uma linguagem muda
por dentro, um cacto de selênio e violência.
 
(Uma poesia autoafirmativa como esta não pode valer a pena).
 
Uma menina, inesperada;
uma mulher, horizonte irrecuperável. 
 
*****
 
Consanguínea
 
 
Sou uma nômade entrecortada pelo vento,
película que não sabe de onde veio
                                                                          nem pra onde vai.
Uma capa encarnada que celebra
e dorme.
 
Minha liturgia é o gérmen, a rocha
o broto de arrecifes na esquina
um afago, um rosto, o perdão.
 
Uma viajante 
esquartejada pelos genes
pelo crepúsculo, essa detração. 
 
*****
 
Aparição 
 
Imberbe,
uma mocinha de têmporas roxas,
que não sabia se Ortega y Gasset
era uma ou duas pessoas,
mirou-se no oculto
da fotografia
e espreitou um rosto que parecia ser o seu,
mas que era outro,
mais lôbrego,
um óvulo, uma cimitarra.
 
Ali, começaram os problemas
e “o que sou” “por que existo”
“para onde vou” “de onde venho”
nunca a abandonaram:
perseguem-na até hoje,
onde a luz noturna finda
e o grande medo reaparece,
permanente, 
como a queda de Roma
como os milênios
em que Jesus, 
manso e humilde de coração,
deu-se em sacrifício
a quem não vale um dente. 

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