Marcela Alves nasceu em 1991, em Divinópolis, MG. É psicóloga formada pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), especialista em psicologia da saúde e atua na prática clínica. Escreve desde a infância. Da costela do impossível é seu primeiro livro.
Ponto de referência
a casa não está na casa
está na calçada de amoras roxa
no semblante do porteiro
empurrando com força
as pálpebras
para recepcionar o sol
nas três colheres
e mais um tanto
esse tanto é fundamental
o mistério é fundamental
não está nos móveis
mas no vão entre os móveis
onde o sol já recepcionado
faz uma segunda casa
para o cachorro morar
está no jeito certo
de pegar o cachorro
a casa está nas pintas trigêmeas
do peito nu arfante
se um dia encontrasse
apenas duas
não saberia
me orientar
se um dia as pintas trigêmeas
não dissessem nada
do mistério
a casa não estaria mais na casa
e pelas paredes frias eu te choraria
Da pertença
quando nasci
o amor garantiu
que fôssemos eu e a realidade
uma coisa só
permitiu
que criasse o mundo
abrigasse tudo
a sorte de pedir e ter
quando descobri que não sou deus
e que nada me deve a vida
eu caí em mim
e aquele amor primeiro
me livrou da queda infinita
o destino do colo é virar chão
o destino do homem é abrigar outro homem:
bicho apanhador de horizonte entre
uma queda e outra
Sacro ofício
minha mãe cozinha como quem reza
com a ancestral engenhosidade humana
de transformar a terra em algo profundo
agarra a couve com tal devoção
que nenhuma folha escapa
de virar arte em verde irreplicável
do seu altar de temperos serve-me
o seu farto e diário milagre
seus olhos querem uma resposta
com a ansiedade de uma estreia
como se perguntassem na verdade
se conseguiu amar-me
até o último átomo
com a sua oferta
ah, mãe
assim como o bicho só vinga se for cria
quando eu era apenas fome
você quem saciou
inaugurando outra:
a minha fome de ser gente
e de transformar a terra em algo profundo
o animal come e dorme
o humano que come também pode louvar
se o que toco neste prato não é o próprio Deus
nada no mundo chegará tão perto
e fechar os olhos como quem, farto
repousa
porque entendeu a oração
O amor velho
você saiu da cama e mandou um beijo fez o trajeto habitual
e parou em mim
há seis décadas o recebo mas não ouso dizer
sei como será
não o chamarei pelo nome que agora se apresenta
à memória
é trabalho do olhar já gasto
acomodá-lo de novo
analisar
como quem faz ciência seu nariz redondo
as orelhas que ainda crescem a pressa com que tenta
vestir a roupa
já não lhe obedece
se um dia te perder esse medo ferino
aprendemos a ter como pele
quero continuar no espanto que a sua verdade me causa
a derradeira morte
nos mostra uma pessoa
é não esperar mais o inédito
nesse ritual fechei a palma
para que não me escape da mão o beijo há riscos que já não tenho
idade para correr
quis ligar na rádio para anunciar
o amor velho nasceu hoje frágil mas muito calmo não precisou chorar
como os outros para atestarem a vida
vermelha de sangue e festa
começou agora às seis da manhã
Com todo respeito à tradição
sexta-feira santa
meu pai fritou mais peixe porque eu pedi
o tanto que estava bom
não posso chamar de sacrifício tomamos também uma cerveja acho que não pode, pai
pode sim
Jesus está ocupado com outras coisas riso cúmplice e foi uma só
já o peixe
comi mais do que a fome pedia sacrifício não foi mesmo
acho que foi gula mas Senhor
Tu sabes que eu só queria me encher de alguma alegria
ocupar meus privilégios de filha nesses dias tão tristes
a cruz às vezes tão pesada
nunca ouvi de meu pai uma recusa
menos por ser eu caprichosa mais por ele ser assim mesmo falando pouco
os gestos levam os afetos usa o corpo todo
para transportar o amor
Deus quando pisou no chão dessa vida tão pouca
escondeu em nossa carne um pedaço do céu
as horas
sem nenhum preparo que o encontramos tem mais força
que o resto
Boomerang
escrevi a lápis
amor
não tenho mais quinze anos os cachorros todos
enterrados
sei que tudo amor acaba
os rios dos nossos olhos não se cruzam
a morte espera
apenas um deslize
os fins estão costurados na pele dos começos
toco em você a mão opaca da despedida
solidão a antepalavra a sombra implícita no calor da página
ou o mar onde os rios sempre hão
de encontrar
não
não ouse me olhar
como quem quer tirar um a um dos
prédios erguidos me entupir de seda
enlouquecer o tempo me fazer ter quinze anos e cinco e zero
nascer de novo
no lugar que nunca existiu sem seus olhos
enquanto afogo
não sei mais qual rio é de quem
enquanto apago
entre os escombros as letras borradas você ri porque sabe
nem se eu arrancasse a folha
arrancasse a pele
se da palavra amor me despeço ela volta feito um cão