Dar Corpo ao Naufrágio (2021), de Maria Caú

| |

Por Rafael Julião*

1

Maria Caú, pesquisadora e crítica de cinema no Rio de Janeiro, acaba de lançar seu primeiro livro de poemas, Dar corpo ao naufrágio, justamente em 2021, em meio ao naufrágio coletivo, nacional e mundial, que estamos atravessando. A autora já havia publicado poemas esparsos, mas é a primeira vez que reúne seus textos de até então; mais que isso, seleciona e ordena, elabora uma curadoria e uma montagem, cria um objeto íntegro, fluido e entrecortado, uma narrativa.  

2

À entrada, a epígrafe e a dedicatória nos oferecem a âncora do naufrágio. Dali não perdemos nunca de vista que a voz lírica está ligada a um corpo real, que circulou em espaços reais, confundiu-se em pensamentos reais, conheceu, ganhou e perdeu pessoas reais. A literatura e o cinema são manuais de sobrevivência. A terra firme é outra depois do naufrágio.  

3

A conjunção “como” atravessa todo o livro: é ela que organiza as três seções (“Como corpo”, “Como alguma sede” e “Como enterrar de vez”) e aparece também já nos dois primeiros poemas: “Como reconhecer o corpo” e “Como chorar em Buenos Aires”. Aliás, é a conjunção “como” que até podemos imaginar elíptica no título geral, Dar corpo ao naufrágio, que fica ambíguo entre uma lição e uma latência. 

4

O primeiro poema do livro já nos situa em seu problema central: a dificuldade de reconhecer o corpo. A expressão nos transporta para a constatação da morte; nela os corpos se deformam, incham, mudam de cor, tal como o real que parece não estar habituado à prova tão concreta de sua existência: não queremos acreditar que a morte há, que toca o corpo, desfigura o sujeito e o mundo. Num jogo ágil de pronomes, cortes, pontuações e deslizamentos, a poeta faz melhor do que fariam as câmeras objetivas ou subjetivas; o foco lírico nos desorienta. Ao fim, lá estamos todos, reconhecidos no corpo morto do primeiro poema. 

5

O suicídio no livro é outra expressão do naufrágio e, sobretudo, do corpo. Um sucídio elegante, sinfônico, janela, gatilho, chumbinho, um suicídio nunca é limpo, diz o poema. É preciso roer a culpa que não tivemos, é preciso compreender a pressa, aceitá-la. É preciso não ler o bilhete que não foi deixado. É preciso reconhecer em qualquer corpo o nosso, saber que entre o mar e a terra firme não há tela.

6

Esse livro poderia se chamar Curso rápido de etiquetar afogamentos cotidianos. 

7

É curioso que Maria Caú seja crítica de cinema. Seu verso, de fato, tem muitos elementos dessa expressão artística, mas tem ainda mais da poesia em si: conhece seus ritmos próprios, suas possibilidades, suas variações de registro e de foco. Tem coloquialidade e densidade existencial, cinismo e profundidade, jazz e montagem. É curioso também que tenha estudado Woody Allen, e nele a imagem da morte e do próprio escritor. É curioso que deboche no poema do diretor homem branco hetero cis 45 vencedor de oscars.

8

É excelente “O gosto das magnólias”, veja-se bem, me refiro ao poema. É nele que se pode ver melhor o gosto do livro. É preciso perceber que “veja bem” marca um ritmo, mas também a ordem da eu-lírica (da crítica de cinema? da espectadora? da leitora?). Agora aquele era o herói, o rei, o bedel, o juiz; ela era o homem, o muro, a morta, a viva, o corpo, o pai, a filha, o alcóolatra, as orelhas, o ontem, o bowie, as magnólias — o baralho. 

9

É muito importante também o poema que esclarece que bissexuais não existem, porque ali estão as cartas todas na mesa, usou todas, nem respirou, jogou tudo ali, afinal é preciso dizer o que dizem os que dizem que os bissexuais não existem. É preciso se perguntar onde estes estão nos poemas, nos filmes, nas séries, no instagram. É preciso afirmar mais e mais essa verdade evidente que, como todos sabem, nós bissexuais não existimos. 

10

No fim está o fim, o voltar do naufrágio à terra, reencontrar o desencanto, o tédio, o desgosto, a falta de novidade e de lição, os 30 depois da copa de 94 (eu vi também), esperar a terra encontrar o navio e o poema sacrificado, o corpo acordar náufrago, vivo e inteiro na areia molhada, vazio de mar. Por isso, é recomendável ler esse livro de estreia, atravessá-lo, entendê-lo no momento presente, nosso e de Maria Caú, a poeta.  


Rafael Julião  – É professor, poeta e pesquisador da literatura e da canção popular brasileira. É também autor dos livros Infinitivamente Pessoal: Caetano Veloso e sua verdade tropical (2017) e Cazuza: segredos de liquidificador (2019).

Deixe um comentário

error

Gostando da leitura? :) Compartilhe!