3 Poemas de Valeria Michea (Chile, 1990)

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Curadoria de Elys Regina Zils
Tradução de Gladys Mendía

Valeria Michea (Chile, 1990). Estudou Filosofia e Letras e Tradução. Desenvolveu a profissão de ensinar inglês e traduzir. Iniciou na escrita literária através de oficinas. Cursou o Diploma de Escrita Criativa da Universidade Privada de Santa Cruz (UPSA) e é membro da Oficina de Poesia Llamarada Verde.


DOMINGOS

meu pai sintonizando canções antigas

é um homem delicado e de bom gosto
é um homem pálido sob a luz do deserto

se ouvires com atenção por trás da escuridão
descobrirás a ternura de sua busca
a emergência de sua espera

cada domingo a espera é um almoço
que desce por nossa garganta
arrastando a pena

os olhos do meu pai
apertados como punho pronto para o golpe
e suas mãos como pães duros quando acariciam
me fazem bem

os domingos antes do encontro
as pessoas enrolam suas palavras
param a viagem para que a língua
seja apenas isso e não mais linguagem
isto é aquele som que emites quando
pedes o sal ou a salada
ou começas a perguntar
quem cozinhou por que tudo é tão delicioso

o sorriso do meu pai é um paraíso inventado
um país do nunca com uma colônia de fantasmas
assustados, furtivos, incapazes de naturalizar a gargalhada

aos domingos o rio parece nos adotar
e o sorriso do meu pai torna-se cristalino
fingindo ser algo mais do que vivemos juntos

a comida ferve na mesa mesmo no verão
os limites de cada prato são avaros
e começa o concerto de anedotas chocando-se
no ar umas contra as outras todas juntas
formando uma única história
os sorrisos do meu pai e seus antepassados
fundem-se num grito

rir já como se a vida fosse verdade.


POEMA DE INVERNO

Fui vaga-lume
na boca de um homem
cujas ideias iluminaram o mundo
só para mostrar
que estou aqui
poderia ter estado
em muitos outros lugares
sem nunca ter saído da minha aldeia
isto é dos meus anseios

talvez nunca
devesse ter começado a partir
com culpa
de todos os lugares

a história é uma só

uma mulher que era a minha aldeia
aparece-me à noite
para contar histórias
que não ouço e ela diz
diz-me
a minha primeira dor foi dar-te à luz
sabendo que ficavas ao meu lado
e partias para sempre

abraçamo-nos
choramos como só choram as mães com as filhas
ou as órfãs com o fantasma que inventam
continuamos a chorar
porque nos desvanecemos
mas eu acompanho-a em pão e migalhas
é que me apeguei
a ela
como os fungos à cortina de julho
o parque à janela
ela a mim
duas almas sozinhas
sozinhas numa aldeia


O INSTANTE DO REGRESSO A CASA

lembraremos sempre
cada um terá
a sua própria versão da infância
para uns será o inferno
para outros será uma brisa de verão
para mim será o instante
do regresso a casa.

ter alguém com quem tomar o lanche,
alguém que se preocupe
que um pão com manteiga
adoce as tuas entranhas

isso é a infância

ter alguém que te encurte os domingos
que te aproxime a noite
para que os medos se afastem

alguém que veja uma porta
e sem temer o que há do outro lado
a abra para ti
te acompanhe a atravessá-la
mesmo na absoluta incerteza.

a infância é ter alguém
que mesmo no infinito espaço branco
da memória
continue sendo real e possível.

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