Curadoria e tradução de Elys Regina Zils
Jessica Freudenthal Ovando (Bolívia, 1978). Respira no aqui e agora. É mãe de Trilce e Zen. Escritora, artista, tradutora e editora, gestora cultural e promotora de leitura. Seu livro Cérvix ganhou o prêmio Franz Tamayo (2022) e Hardware (2004 Plural, Yerba Mala Cartonera e BDP 2020) em sua primeira edição obteve menção honrosa no Prêmio Nacional de Poesia Yolanda Bedregal. Publicou também Demo (Catafixia 2010, Plural 2011 e BDP 2020), El filo de las Hojas (3600, 2015). Editou a antologia “Cambio Climático: panorama de la joven poesía boliviana” junto com B. Chávez e JCR. Quiroga (Fundação Simón I. Patiño 2009).
Através da poesia e da literatura, tem colaborado frequentemente com diversos artistas audiovisuais, dramáticos e plásticos nacionais e internacionais. Participou de diversos festivais e encontros literários, além de ministrar oficinas de poesia para crianças, jovens e adultos. Criou a Ludoteca de palavras, com o objetivo de aproximar a escrita criativa e a leitura de forma lúdica e simples para todos. Escreveu vários artigos e colaborou com diversas revistas. Fragmentos de sua obra foram traduzidos para o alemão, grego, inglês, italiano, persa, entre outros. Para crianças, publicou a coleção de poesia Patapata com dez livros ilustrados, nos quais figuram autores como Luis Lucsik, Eduardo Mitre, Yolanda Bedregal e Matilde Cazasola (Plural e Fundación I. Patiño). Também o livro Mirarte: los cinco trucos del arte (MNA) com Luciana Molina. Alguns de seus poemas e ilustrações infantis foram incluídos em revistas e no livro Escribo la A ilustro la Z (CCP, FC-BCB). Apaixonada pelas artes culinárias, pelo canto, pelas artes audiovisuais e pela honestidade, caminha guiada pela intuição e pela consciência, passo a passo.
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Meu livro “Demo” foi criado a partir da leitura e pesquisa de poesia espacial e caligramática. Cheguei à forma a partir da necessidade interna do livro, ou seja, do tema: minha identidade fragmentada e um país que passava, naquele momento, por um processo de mudança que sonhávamos ser profundo e diferente. Uma coleção de poemas que está a “altura” da Bolívia deve estar em diferentes alturas, nosso território abrange picos altíssimos dos Andes, vales, selvas tropicais, campo, Amazônia, exceto o mar. A “altura” da Bolívia é diversa e é isso que “Demo” tenta mostrar com uma estrutura baseada em perguntas e uma voz poética na primeira pessoa do plural: “quem somos nós?” O mundo não se reduz ao que o político por sua vez decide o que é ou deveria ser. “Demo” é um poema longo e fragmentado que mostra um país também dividido: cultural, social, económica e politicamente. A voz poética é um “nós” em tom irônico e questionador, que questiona a “noção de nação”.
[…]
A primeira escritora boliviana que me influenciou foi Blanca Wiethüchter; tive a sorte de fazer uma oficina com ela nos anos noventa. Ela então me disse que “era melhor eu me tornar sapateira ou outra coisa” porque como escritora eu estava perdida. Seu comentário me levou a escrever rigorosamente. Hilda Mundy veio depois, eu a li a fundo assim que lançou Hardware (2004). Já a li antes em La Mariposa Mundial #3, seu humor negro e a estrutura de sua obra me impressionaram.
É difícil rastrear a tradição literária da poesia escrita por mulheres até às suas origens, estou agora trabalhando numa antologia bilíngue, em inglês. Devo admitir: o mapa está meio nebuloso, o trabalho de mapeamento é árduo. Porém, considero que hoje as mulheres predominam na poesia boliviana. Não falo de quantidade, mas considero que a qualidade da poesia que produzem é iminente. Blanca Wiethücther, como disse no início, é um alicerce. Matilde Casazola, Norah Zapata, Blanca Garnica, Virginia Ayllón, Marcia Mogro, María Soledad Quiroga, Vilma Tapia, Sulma Montero, Paura Rodríguez Leytón, Esperanza Yujra y Mónica Velásquez são nomes que formam a literatura fundamental escrita por mulheres. Mais jovens, Adriana Lanza, Elvira Espejo, Janina Camacho, Emma Villazón (†), Montserrat Fernández, Claudia Pardo, Carolina Hoz De Vila y Claudia Vaca. Novas vozes na literatura escrita por mulheres: Iris Kiya, Milenka Torrico, Anahí Maya Garvizu e Melissa Sauma já são reconhecidas por suas contribuições à poesia e literatura boliviana. Tal como Karin Littau levanta a pergunta sobre uma “política sexual da leitura”, penso que vale a pena uma reflexão profunda sobre uma “política sexual da escrita”. Deixemos a questão em aberto.
JESSICA FREUDENTHAL
O ENTERRO DO NOSSO CADÁVER
Se você não é a pessoa livre que gostaria de ser,
encontre um lugar onde possa contar a verdade sobre isso.
Anne Carson
Pequena bolha de vidro
janela que mofa
lâmpada fraca
duas meninas e eu
preparamos o café da manhã
na mesa.
A palavra “autonomia” está cozida
ressoa o trovão das cascas
e o cheiro de gás.
Hoje, 25 de fevereiro de 2023
mais de 2.000 suspeitos de crimes
foram presos na mega prisão de “El Salvador”.
Hoje a China recusou-se a condenar
a invasão da Ucrânia pela Rússia.
– Mamãe: Eu queria te contar que… mas é melhor não, não posso-
Meu pai sai de moto antes que nos pegue a gôndola …
Mamãe: Meu pai às vezes adormece de manhã (risos) e se atrasa.
Ah, eu não tinha que te contar.
Posso te dizer que ele nos deixa com Carolina, certo? E ele nos coloca em sua motocicleta
mas só para experimentarmos…
– Mãe: Tenho medo de te contar, mas papai disse que vai nos levar de férias para Coroico.
Durante meses, a violência entre israelitas e palestinianos está cozinhando a fogo lento. Muitos temem que esteja a ponto de ebulição.
Esta quinta-feira, aviões israelitas bombardearam a Faixa de Gaza em resposta ao lançamento de foguetes que horas antes tinha ocorrido daquele território palestiniano em direção ao sul de Israel.
Segundo os militares israelenses, os aviões atingiram uma fábrica de armas e um complexo militar do Hamas em Gaza.
Aos poucos removo todos os vestígios de mentira e violência: móveis, pinturas, papéis, lençóis, roupas, livros, fotos, pertences, farinha, temperos, decorações ridículas, dedicatórias enganosas, presentes insípidos, lembranças espinhosas, esquecimentos mutilados, feridas abertas, enganos infinitos, raiva, fúria e ira.
Hoje, a música de Bonnie Tyler e Jimm Steinman completa 40 anos. Tenho 44 anos.
Eclipsar um coração.
Frases gastas.
Amor obsessivo.
Delírio.
Exorcismo com o qual se pode dançar.
Minhas filhas, ambas meninas
cobertas de vidro.
Leio atentamente o poema “Poderia 1” de Anne Carson:
Se você não é a pessoa livre que gostaria de ser, encontre um lugar onde possa contar a verdade sobre isso.
Minha filha mais velha colocou um altar em seu quarto.
Éramos quatro.
Temos outro altar entre a sala, a cozinha e a sala de jantar.
Tentamos acentuar a iluminação com flores amarelas
mas o cheiro das mentiras não mente.
Reclamar seria estúpido
chorar minha dor ainda pior, certo Wislawa?
Só a fúria acende a luz.
Hoje meu talento é não ser vista
é desaparecer
diante de teus olhos, teu corpo,
tua vida
e tua morte.
Dissolver-me entre as fantasmas que dormem
emaranhadas em seu cabelo,
arranhadas por suas unhas sem fim.
Hoje meu dom
é desvanecer
diante de Seu nome impronunciável.
Hoje meu dom é ser um espectro
refletido em teus olhos
de camarão Mantis agressivo:
luz ultravioleta, infravermelha, polarizada,
doze tipos de receptores
informação visual
processam seus próprios olhos
Não o cérebro
já que cada olho é independente do outro
girando até 70 graus.
– Mamãe: Estás me interrompendo.
Quero dizer que estou entediada e quero ouvir música.
– Meu papai me mandou uma mensagem. Olha?
Parece que o aquário está estourando.
Uma sensação de queda e desapego
produz uma tímida sensação de alívio.
De uma forma incomum
a lembrança de um grito
nos golpeia violentamente
na mesa de três pernas
longa, quase infinita.
Os garfos se transformam
em extensas raízes
de uma árvore caindo
sobre o telhado da nossa casa.
A folhagem ecoa como o grito
e quebra o nada.
Duas minúsculas gargantas
caem no chão
quebram quando chocam
como lâmpadas de cristal
se imolam
apagando sua luz
cúmplices do silêncio
das mentiras
de ocultação
e da vitrificação.
“AQUELA PESSOA” inominável
está muito perto
nos canais lacrimais dos meus olhos
na sujeira das minhas unhas
no nó da minha garganta
e a pressão – prisão – do meu peito
está aqui e em lugar nenhum
também é um fantasma
uma quimera, um horror.
Ela está entre as fúrias de nossas filhas
debaixo dos travesseiros de suas cabeças enquanto dormem
na tosse que não cura,
na comida que não digerem,
ela está muito perto
em seus desenhos inacabados
no que temem dizer,
no silêncio frio
do vidro rachado
debaixo da mesa de três pernas.
Coincidências não existem
menos para um calculador impassível
e uma trapezista cega.
Quanto cala e quanto fala
a mudez da rede.
Nós é uma palavra inventada
e os simulacros de mudança não existem.
– Mamãe: Tu e o papai escrevem livros, certo? Eu quero escrever um livro.
Eu também gostaria de escrever um livro
O livro das mentiras
O livro dos silêncios
O livro dos enganos
O livro dos segredos
O livro das amordaçadas…
–Esses livros são uma maldição–
e vocês devem queimá-los
cuspir neles
dançar sobre as cinzas
jogar pétalas de flores amarelas
e libertar a todas nós:
as silenciadas, as ocultas, as ignoradas, as rejeitadas, as atacadas, as invictas e as vítimas,
as amantes e as amadas, as sem nome, as nomeadas…
Libertem-se, filhas, de tudo que não lhes pertence
de tudo que nomeei neste poema
de cada letra escrita neste papel.
Libertem-se. Eu me liberto. Eu as liberto de mim.
Eu me liberto de mim mesma.
De toda a memória na minha pele, nas minhas células,
em meus batimentos cardíacos e em todas as minhas sinapses.
Libero minha alma e meu espírito
desembaraço minhas cordas vocais
da corda que amarraste com ternura
que vinculaste à ausência
e eu grito para todo mundo que estou lúcida.
Na hora do café da manhã, no balcão,
minhas filhas e eu
cortamos um delicado pão redondo
de belos enfeites brancos
e crocância impecável.
De repente o fio da faca
revela dentro
uma fauna cadavérica
um uivo horrível
guardado por milhares de anos
por milhares de nomes silenciados
e tortura sexual sem fim.
As migalhas do pão
se transformam repugnantemente
sobre o balcão
em dípteros, coleópteros, ácaros e parasitas.
Minhas meninas e eu ficamos pequeninhas.
Tu entras pela porta
como se este ainda fosse o teu pão
teu balcão, tua casa
mas nada nos pertence.
Ninguém jamais
pertenceu
há ninguém.
Quarta perna arrepiante com incontáveis olhos.
És aquele que come na mesa do outro:
παράσιτος parasitas
parasitoide
O parasitismo pode ocorrer em todas as fases da vida de um organismo
ou apenas em períodos específicos de sua vida.
Uma vez que o processo representa uma vantagem apreciável para as espécies parasitas
é estabelecido através da seleção natural
e geralmente é um processo irreversível
que perpetua através das gerações
em profundas transformações fisiológicas e morfológicas da espécie
Parasita e hospedeiro.
Para mentir e acreditar nas mentiras são necessários dois
mas também existem tríades:
como todo parasita é um organismo,
pode ser convertido por sua vez
em hospedeiro de uma terceira espécie.
Ao parasita que contamina outro parasita
é chamado de hiperparasita.
– Mamãe: Posso comer uma maçã?
Frutas maduras repousam sobre o balcão
minhas filhas adoçam seus lábios
olho para suas bocas amordaçadas
por frutas proibidas
por palavras negadas.
As moscas chegam
e o zumbido escuro
do silêncio.
Qual é o fruto da mentira?
Mutismo, encobrimento, ocultação
E tu, que comes da nossa mesa,
quarta perna oca
Viste os bichos saindo do pão com todo aquele cheiro pútrido?
– Coloquei-os lá com minhas próprias mãos.
Ouviste o barulho da árvore caindo no telhado?
– Cortei as raízes enquanto dormiam.
Viste nossa casa queimar?
– Espalhei gasolina e acendi o fogo.
Funâmbulo
Histrião
Prestidigitador
Hoje
novas sementes foram plantadas
a terra do karma é nutrida
minhas filhas crescem
sou uma árvore gigantesca
elas são frutas maduras que se soltam
e caem suavemente na grama
sem a necessidade de que o vento
nem os animais mexam nos meus galhos.
Lá de cima
me contemplo.
Sou eu, aqui e agora.
Abraço-me com o sol que passa pelas minhas folhas.
Aqui e Agora
sob milhões de anos de terra úmeda
enterro nosso cadáver.