Fabio Guevara (Costa Rica) é ensaísta, psicólogo e analista junguiano. Membro do Colégio de Profissionais da Psicologia da Costa Rica, especializado em Psicoterapia Analítica, Imaginação Ativa, estudo da personalidade através do indicador de tipo Myers-Briggs (MBTI), análise de sonhos, meditação e técnicas mindfulness.
Artigo traduzido ao português por Floriano Martins.
Ilustração/colagem: “m ostrando a cornucópia” da artista Lia Testa .
O surrealismo, segundo me parece, tem uma particularidade que o vincula com a psicologia analítica, que é essa virtude de poder mergulhar nos interstícios da psique, por esse nachtmeerfahrteen ou mar tenebroso de que falava C. G. Jung, o insigne psicólogo suíço. Os primeiros surrealistas já intuíam essa viagem noturna e assim a expressavam: é no aprofundamento da vida inconsciente onde será possível encontrar sentido para a atuação humana.
Entre todos os caminhos e rotas da viagem, a via régia ao inconsciente são os sonhos. Esta afirmação de Sigmund Freud, como suas teorias sobre a psicanálise, seguramente terá influenciado, de maneira determinante, o movimento artístico durante sua alvorada nos primeiros anos do século passado. Esta rota dos sonhos contempla a existência de uma série de símbolos, desejos e repressões, que, ao modo de linguagem pré-lógica, se converte no material projetado através da criatividade artística. A fonte da inspiração reside nessa onírica simbólica da qual nos valemos para entender o sonho como um mito pessoal, da mesma forma que entendemos o mito como um sonho coletivo, dinâmica na qual o automatismo proposto pela corrente surrealista jogo um papel sumamente importante, uma vez que vem a ser o mecanismo para resgatar o conteúdo do sonho e do mito de seu fundo inconsciente.
O automatismo é então uma arte. É, fazendo uma analogia com Jung, essa “arte de deixar que as coisas aconteçam…”, que nos fala dessa atitude determinante no processo psicanalítico, e que se converte na chave (ou chaves) que abre a porta do caminho. Essa chave, na clínica, é o desejo que se põe em jogo através da relação do terapeuta com seu paciente – a transferência -, e por esta razão é que muito me atrai o axioma que me convoca a escrever estes parágrafos: as chaves do desejo.
Sonhos, desejo, transferência, são elementos importantes para este processo criativo que motoriza a direção da cura e que, pelo visto, vem a ser também o motor que inspira o surrealismo. A criatividade como produção e projeção dos conteúdos inconscientes.
Para a psicanálise o desejo é um conceito nuclear para qualquer consideração possível de sujeito. O desejo é inconsciente, pois está sempre além de uma demanda, é próprio de cada sujeito e não tem a ver com a sobrevivência ou a adaptação, define o ser humano e o separa do animal. É essencialmente insatisfeito, pois em sua própria gênese está motorizado pela perda. Ele se realiza, não se satisfaz, e está sempre em relação com uma falta. Esta particularidade define sua natureza.
Mas também este desejo da psicanálise tem como característica ser o desejo do Outro, onde o sujeito quer ser o objeto do desejo do Outro assim como de seu reconhecimento. Apenas quando a função paterna opera e separa (alienação-separação) é possível então falar de um sujeito. E é nessa separação onde se revela a falta do Outro que, por sua vez, abre um lugar para aquele que se perdeu e que, por estrutura, de fato o está. Somente é possível reconhecer esse lugar de ausência na medida em que há algo que falta ao Outro.
Contudo, o significado do Outro como sujeito joga um papel secundário com respeito ao Outro como ordem simbólica. Para o psicólogo francês Jacques Lacan, “o Outro deve em primeiro lugar ser considerado um lugar, o lugar no qual está constituída a palavra”. Palavra e linguagem estariam além do consciente, portanto não se originam no eu nem no sujeito, mas antes provêm de um lugar fora do âmbito da consciência – uma alteridade -, um princípio fundamental para entender que “o inconsciente é o discurso do Outro”.
O que poderia ser visto como irracional da produção artística, as imagens deformadas e sem sentido aparente das obras surrealistas, teria sua analogia no que o psicanalista conhece como a deformação onírica, que opera sobre duas leis que são as mesmas que regem o funcionamento do inconsciente: a condensação e o deslocamento.
A condensação aparece como o mecanismo que agrupa várias representações em um só elemento que aparece como produção do inconsciente. Por sua parte, o deslocamento se produz quando ao invés de mostrar a representação que simboliza aquilo que se deseja satisfazer ele toma então outra representação para substituí-la, utilizando uma no lugar da outra.
A ideia do inconsciente operando sob as mesmas leis e códigos da linguagem aparece como mecanismos de metáfora e metonímia, duas figuras do campo da linguística das quais se utiliza Lacan. A primeira relacionada com a condensação e entendida como a fórmula segundo a qual um significante substitui o outro tomando seu lugar na cadeia: uma palavra por outra; e a segunda como a conexão de suas palavras em um único significante: palavra a palavra.
A psicanálise tem como propósito revelar aqueles significantes que o sujeito incorpora em seu viver e a posição na qual se situam com respeito à cadeia de significantes, a fim de que a pessoa lhes dê um novo significado, os “ressignifique”, assumindo e melhorando sua experiência de vida. Apela de maneira direta a essa parte desconhecida do sujeito que, como vimos, é seu gozo e seu desejo, e que a arte surrealista traduz plasticamente outorgando sentido onde paradoxalmente parecia não havê-lo. Para Dalí, “é a ação surrealista o que atravessa o sonho e o automatismo concretamente; o delírio paranoico é a própria essência surrealista e basta a si mesmo com sua força…”
As imagens que fascinam por igual o artista e o espectador se convertem então na própria expressão de um inconsciente criador, que também possui a capacidade de canalizar seus conteúdos exercendo uma influência formativa sobre a psique. Para Jung, estes símbolos que em seu conjunto compõem a linguagem pré-lógica funcionariam como transformadores que transferem a libido de uma forma inferior para outra superior, produzindo uma ordem. Em Formações do Inconsciente ele diz: “A vivência primordial carece de palavras e imagens, pois é uma visão no espelho escuro. É meramente poderosíssimo pressentimento, que quisera chegar à expressão, é como um torvelinho de vento que capta tudo o que lhe oferece e, arremessando-o para cima, ganha com isto figura visível”.
O interesse do surrealismo pelo arcano e sombrio é mais do que reconhecido. Em sua produção é possível, como na psicanálise, fazer uma leitura do sujeito, de sua elaboração criativa e encontrar “a saída do horror edificante de cada um” (Motta). Parece-me que o surrealismo é outra rota para margear os limites do impossível. Outra forma de dar lugar ao sujeito, de lhe proporcionar uma resposta, de oferecer as chaves do desejo que lhe habita.