3 Poemas de Gabriel Chávez Casazola (Bolívia, 1972)

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Curadoria e tradução de Floriano Martins

Gabriel Chávez Casazola levou muito a sério as lições da Antipoesia. Os poetas desceram do Olimpo, disse Nicanor Parra. Quem escreve é fundamentalmente um indivíduo da rua, um filho de vizinho. E ainda – talvez por isso seja tão lido e imitado – seus poemas nos lembram que esses homens simples também são capazes de imaginar um mapa para se orientar. Que a imensidão também habita suas pequenas memórias. Imago mundi, como os cosmógrafos do século 15 o chamavam. Um livro que rapidamente reunisse a complexidade do cosmos, capaz de abranger os dispersos em suas contradições e ambivalências. Mesmo com as limitações da nossa própria linguagem. Com nossas próprias limitações.

SANTIAGO ESPINOZA


Gabriel Chávez Casazola se espanta com tudo: o sol, a velocidade da luz, os girassóis de Van Gogh que podem se tornar as minúsculas sementes de um semeador japonês, uma edição perdida de Pound onde encontrou poemas reveladores, as dezenas de milhares de árvores que são emblematicamente todos os homens, a música que surge em nós quando já não a esperávamos, o cinema e até o American way of life. Ele não para de pesquisar em todas as coisas porque sabe que a poesia é evasiva, e o momento exato deve ser encontrado para fixar na página um brilho, uma breve melodia inédita ou sombras de mulheres amadas para que não estejam apenas no passado e desapareça esse passado.
(…) A poesia de Chávez Casazola nos dá continuamente momentos inusitados ou mágicos. Um verdadeiro poeta e nada mais.

MARCO ANTONIO CAMPOS


O TRABALHO SOBRE O QUE ESTÁ PERDIDO

Eu vejo o rosto do meu pai
— vamos chama-lo assim —
figurado em uma moeda
chinesa, dessas para lançar o I King.

Seu rosto é delimitado pelo perímetro da
moeda, seus cabelos se
confundem com os traços e arabescos
— ou chinescos? —
Da parte superior, seu bigode
com as volutas da parte inferior.

Dizem que o fundamental nessas moedas,
seu valor,
está no centro
oco como na roda do Tao,
onde o importante não são os raios, mas o vácuo do eixo
que permite que a roda gire.

Nisso também essa moeda se parece com meu pai
— vamos continuar chamando-o assim —
ou o rosto do meu pai.

Em que o fundamental dele em mim, seu valor
é sua ausência, seu vazio central,

aquele oco que perfura a memória do rosto de um estranho
que eu conheci, de um conhecido
que desconheço

e que ao não haver estado
simplesmente não estando permitiu que meus raios girassem
para onde estou agora.

E ainda assim, enquanto
da almofada da fortuna contemplo
os traços, arabescos e volutas
dessa moeda para jogar o I King,
como quem deixa passar a manhã,

algo em um vazio de mim desejaria consultar o oráculo
se ainda é possível o trabalho sobre o que está perdido:
tigela onde são cozinhados a demência, o rancor, cheques sem fundo,
exílios, os assados perdidos n’El Portugués.

Se seu rosto, morto em vida, perfurado em mim,
é ainda possível.


DECLARAÇÃO

Eu não creio no homem. Apenas
na centelha de luz dentro dele,
que um sopro de ganância extingue
como a tempestade apaga um pequeno pavio.

Já vi muito e não creio no homem.

Amo as árvores. Os animais.

Viajei e vivi demasiado e o
o único esporte radical que ainda me interessa

é caminhar pelo campo sentindo a vertigem do tempo
nas folhas que caem

ou a feliz adrenalina das novas folhas.


MEMENTO MORI

Nem o arco que contemplou as pomposas vitórias de César Marco Aurélio Antonino Augusto
nem aquele que quase foi roçado pela tiara do Papa Rei erguido sobre um cavalo
preciosamente arreado
nem esse outro que viu o Grande Corso desfilar com suas tropas no zênite
de seu tardio império do século XIX
e nem mesmo a pequena sebe de pinheiros sob a qual passeava o Libertador,
homem bastante pequeno,
na quinta de São Pedro Alexandrino,
cobiçaram o mesmo poder
que o arco que forma a tua cintura
ou celebraram melhor
a frágil duração
dos reinos e o reino deste mundo
que a curvatura de tuas costas
quando a minha mão, ao amanhecer, a penetra.

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