3 Poemas de Jorge Luis Borges (Argentina, 1898-1986)

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Curadoria e tradução de Floriano Martins

Os idiomas do homem são tradições que entranham algo de fatal. Os experimentos individuais são, de fato, mínimos, salvo quando o inovador se resigna a lavrar uma espécie de museu, um jogo destinado à discussão dos historiadores da literatura ou ao mero escândalo, como o Finnegans Wake ou as Soledades. Alguma vez me atraiu a tentação de trasladar ao castelhano a música do inglês ou do alemão; houvesse executado essa aventura, acaso impossível, e seria um grande poeta, como aquele Garcilaso que nos deu a música da Itália, ou como aquele anônimo sevilhano que nos deu a de Roma, ou como Darío, que nos deu a da França. Não passei de algum borrão urdido com palavras de poucas sílabas, que ajuizadamente destruí.

É curiosa a sorte do escritor. No princípio é barroco, vaidosamente barroco, e ao cabo dos anos pode atingir, se são favoráveis os astros, não a simplicidade, que não é nada, mas a modesta e secreta complexidade.

Menos do que as escolas, me educou uma biblioteca – a de meu pai –; no que pesem as vicissitudes do tempo e das geografias, creio não haver lido em vão aqueles queridos volumes.

[…]

Pater escreveu que todas as artes propendem à condição da música, acaso por que nela o fundo é a forma, já que não podemos nos referir a uma melodia como o fazemos às linhas gerais de um conto. A poesia, admitido esse ditame, seria uma arte híbrida: a sujeição de um sistema abstrato de símbolos, a linguagem, a fins musicais. Os dicionários possuem a culpa desse conceito errôneo. Se costuma esquecer que são repertórios artificiosos, muito posteriores às línguas que ordenam. A raiz da linguagem é irracional e de caráter mágico. O danês que articulava o nome de Thor ou o saxão que articulava o nome de Thunor não sabiam se essas palavras significavam o deus do trovão ou o estrépito que sucede ao relâmpago. A poesia quer voltar a essa antiga magia. Sem prefixadas leis, obra de um modo vacilante e ousado, como se caminhasse na obscuridade. Xadrez misterioso a poesia, cujo tabuleiro e cujas peças mudam como em um sonho e sobre o qual me inclinarei depois de morto.

JORGE LUÍS BORGES / Trechos do prólogo de El otro, el mismo. Buenos Aires. 1964.


Borges cultuou duas divindades contrárias: a simplicidade e a estranheza. Ele as uniu freqüentemente e o resultado foi inesquecível: o natural insólito e o estranho familiar. Este resultado, que talvez não volte a se produzir, confere-lhe uma posição única na história da literatura do século XX. Ainda bem jovem, em um poema dedicado a Buenos Aires, a cidade múltipla e cambiante de seus pesadelos, define seu estilo: Meu verso é de interrogação e de prova, para obedecer àquilo que é apenas entrevisto.

A definição inclui também sua prosa. A obra de Borges é um sistema de vasos comunicantes; seus ensaios foram rios navegáveis que desembocam naturalmente nos poemas e nos contos. Não escondo minhas preferências por estes. Os ensaios servem-me não para compreender o universo nem para compreender a mim mesmo, mas para melhor captar suas invenções surpreendentes.

[…]

Através da variações prodigiosas e das repetições obsessivas, Borges explorou incansavelmente este tema único: o homem perdido no labirinto do tempo feito de mudanças que são repetições, o homem que se anula contemplando-se no espelho da eternidade sem rosto, o homem que encontrou a imortalidade e venceu a morte, mas não o tempo nem a velhice. Nos ensaios, este tema acaba por se resolver em paradoxos e antinomias; nos poemas e nos contos, em construções verbais que têm a elegância de um teorema e a graça dos seres vivos. A discórdia entre o metafísico e o cético é irremediável, mas com ela o poeta construiu transparentes edifícios de palavras entrelaçadas; o tempo e seus reflexos dançam sobre o espelho da consciência estupefata.

OCTAVIO PAZ / “El arquero, la flecha y el blanco”. Le Monde. 1986.


OS JUSTOS

Um homem que cultiva seu jardim, como queria Voltaire.
O que agradece que na terra haja música.
O que descobre com prazer uma etimologia.
Dois empregados que em um café do Sul jogam um silencioso xadrez.
O ceramista que premedita uma cor e uma forma.
O tipógrafo que bem compõe esta página, que talvez não lhe agrade.
Uma mulher e um homem que leem os tercetos finais de certo canto.
O que acaricia um animal adormecido.
O que justifica ou quer justificar um mal que lhe fizeram.
O que agradece que na terra haja Stevenson.
O que prefere que os outros tenham razão.
Essas pessoas, que se ignoram, estão salvando o mundo.


O CÚMPLICE

Me crucificam e devo ser a cruz e os cravos.
Me estendem a taça e devo ser a cicuta.
Me enganam e devo ser a mentira.
Me incendeiam e devo ser o inferno.
Devo louvar e agradecer cada instante do tempo.
Meu alimento é todas as coisas.
O peso preciso do universo, a humilhação, o júbilo.
Devo justificar o que me fere.
Não importa minha ventura ou desventura.
Sou o poeta.


O SONHO

A noite nos impõe sua tarefa
mágica. Destecer o universo,
as ramificações infinitas
de causas e efeitos, que se perdem
nessa vertigem sem fundo, o tempo.
A noite quer que esta noite esqueças
teu nome, os antepassados e o sangue,
cada palavra humana e cada lágrima,
o que a vigília possa te ensinar,
o ponto ilusório dos geômetras,
a linha, o plano, o cubo, a pirâmide,
o cilindro, a esfera, o mar, as ondas,
tua bochecha na almofada, o frescor
do lençol novo, os jardins,
os impérios, os Césares e Shakespeare
e o que é mais difícil, o que amas.
Curiosamente, uma pílula pode
apagar o cosmos e erguer o caos

1 comentário em “3 Poemas de Jorge Luis Borges (Argentina, 1898-1986)”

  1. Essa foi minha primeira vez que li Borges; foi uma grata surpresa. Em recente viagem pela Argentina – passando pela Recoleta – bairro charmoso de Buenos Aires, notei uma placa de um Café com nome interessante: La Biela. Resolvemos, eu e meus companheiros de viagem, tomar um café naquele convidativo ambiente portenho. Entre os ambientes externo e interno preferimos este. Ao adrentarmos, tive a grata surpresa de notar logo na entrada sentados em uma mesa, Jorge Luis Borges e seu amigo Adolfo Casares. Mas como? Ainda estão vivos? Sim vivos na memória dos Argentinos e em forma de estátuas caracterizadas aos dois Poetas, na entrada do La Biela. Não resisti, como turista, a uma foto sentado entre os dois grandes amigos.

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