Curadoria de Floriano Martins
Tradução de Elys Regina Zils
A crítica tem sido sensível a certos aspectos da personalidade de León de Greiff (exótica, um dos “raros” do Modernismo), assim como de sua fantasia, humor e poder verbal. E não deixou de surpreender-se ante o contraste manifesto entre o caráter curiosamente sui generis de sua poesia, por um lado, e o apego à tradição e ao bem dizer que, de um modo geral, são considerados preciosidades da literatura colombiana. O que faz de León de Greiff, no nosso entender, tão excepcional inovador, fato que não somente o situa nos inícios da poesia contemporânea de seu país, como também, além do mais, em uma larga e ativa vanguarda.
Tergiversaciones (1925) foi seu primeiro livro e seu primeiro “caderno de apontamentos”, como o subtitulou, de igual forma aos seguintes, movido por seu irrefreável espírito de gozações. Com tal designação, de Greiff assumia nada menos que toda uma poética, já posta em prática em seus versos, ao valer-se de um personalíssimo livre arbítrio expressivo tanto na escolha de suas palavras como nas relações entre estas. A transgressão permanente da norma verbal e literária em uso (transgressão fingida na qual se fundamentam, segundo Jacques Durand, as figuras retóricas) se constituiu assim desde o início em uma constante de sua poesia. Nada lhe foi alheio no exercício tenaz dessa prática: arcaísmos, neologismos, cultismos, jogos de palavras, trocadilhos, onomatopéias, similicadências, aliterações, ecos, rimas luxuosas, caprichosas, insólitas, estrangeirismos, vocábulos técnicos da poesia e da música (não esgotamos, certamente, o repertório).
[…]
Mesmo que, como é sabido, a poesia como arte implique necessariamente um desvio acerca da prosa e da linguagem corrente, esta violação reveste rigor e persistência inusitados na obra de León de Greiff, ao ponto de nos evocar, em sentido inverso (entre as personagens do grande tema pictórico da sedução demoníaca, de um Bosch ou um Brueghel, por exemplo), uma espécie de Santo Antonio entregando-se com paixão às tentações do verbo, aos caprichosos disfarces das palavras em insolente mostra retórica. Semelhante sobre-excitação, que o entronca diretamente com as alucinantes maquinações quevedianas, bem pode ser resultante de uma radical vivência da alteridade, de uma veemente busca do outro no um e suas consequentes alterações caleidoscópicas.
[…]
Entre a obra de León de Greiff e a do poeta peruano Martín Adán há certas tangências dadas pelas singularidades do vocabulário, o emprego do verso medido e as unidades estróficas, em particular do soneto; a preocupação pela identidade da poesia; o recurso aos tecnicismos musicais. Existem também contatos com a poesia do também peruano Carlos Germán Belli, ainda que limitados à ordem léxica e da sintaxe. Tudo o que lhes parece vir de uma fonte comum: a linguagem e procedimentos barrocos. Porém ficam por aí os traços similares, já que em de Greiff não se apresenta a tremente soçobra metafísica de Martín Adán nem a amarga revolta contra um destino injusto tão característica de Belli. Contudo, não carece de interesse, dentro do vasto marco da expressão poética hispano-americana destes tempos, a existência de tão original linhagem.
JAVIER SOLOGUREN / “León de Greiff: alteridad y diversión”. Revista Eco # 230. Bogotá. Dezembro de 1980.
VARIAÇÕES SOBRE UN TEMA CLICHÊ
“Venías de tan lejos…” 1935
Variação n° 5
Veio de tão longe que eu já esqueci seu nome.
Veio de tão longe… Melhor que não tivesse vindo…
Sonatas de silêncio e em claves inaudíveis
Perturba-me o sentido com tácita latência.
Cantatas de silêncio, com vozes abolidas
me inundam, cataratas surdas, mudas, de gelo…
Veio de tão longe… Melhor que não tivesse vindo,
melhor que não adviesse…: veio de mim mesmo.
Função, mito, enteléquia, representação, ressonância
de malfadados sonhos com quase nenhum alívio,
quase sem volume: fantasma quimera,
clareza incorpórea, sombra de fantasia:
eco, luz, contemplação
-verberação do sonho-,
poema sem raízes para sempre escrito.
Veio de tão longe que já esqueci seu nome.
Veio de tão longe… Melhor que ficasse…
Sonatas de sortílego fervor -imperfectibles-
Conturba meu sentido -substância sem presença-.
Cantatas jubilosas, patéticas, desalentadas,
me invadem, cataratas de paixão sem anseios.
Veio de tão longe, melhor que ficasse,
melhor que não adviesse: te nutria meu abismo.
Era representação: reabasteceu meu espírito e minha estadia.
Era meus sonhos e resonhos inúteis e densos ou deveras leves.
Função ou matutação. Fata irreal, única e verdadeira.
Clareza, eco, sombra, lume: se tudo a ti me prendia!
Substância, ressonância,
ficção… Cordial, filtro ou meimendro…
Poema incorporado. Rito sensual, Soluço, Êxtase. Grito.
Veio de tão longe que já esqueci seu nome.
HISTÓRIA DE SERGIO STEPANSKY
Juego mi vida!
Bien poco valía!
La llevo perdida
sin remedio!
Erik Fjordsson.
Jogo minha vida, troco minha vida.
De todos modos
já a perdi…
E a jogo ou a troco pela ilusão mais infantil,
Doo em usufruto, ou a presenteio…
Jogo-a contra um ou contra todos,
Jogo-a contra o zero ou contra o infinito,
Jogo-a em uma alcova, na ágora, em uma espelunca,
numa encruzilhada, numa barricada, num motim;
jogo-a definitivamente, do princípio ao fim,
do raso ao profundo
— na periferia, no meio,
e no submundo…
Jogo minha vida, troco minha vida.
já a perdi
sem mais remédio.
E a jogo – ou troco pela ilusão mais infantil,
doo-a em usufruto ou a presenteio…:
ou a permuto por um sorriso e quatro beijos:
tudo, tudo resulta igual para mim:
o exímio e o ruim, o trivial, o perfeito, o mal…
Tudo, tudo resulta igual para mim:
tudo cabe no pequeno, horrendo abismo
onde tece serpentino meu cérebro.
Troco minha vida por lâmpadas velhas
ou pelos dados com que se jogou a túnica inconsútil:
— pelo mais anódino, pelo mais óbvio, pelo mais fútil:
pelos penduricalhos que penduram nas orelhas
a bronze mulata,
a terracota dourada,
a pálida morena, a amarela oriental ou a hiperbórea loira:
troco minha vida por um anel de lata
ou pela espada de Sigmundo,
ou pelo mundo
que tinha nos dedos Carlos Magno: — para lançar a bola…
Troco minha vida pela cândida auréola
do idiota ou do santo;
troco-a pelo colar
com que pintaram o gordo Capeto;
ou pela ducha rígida que choveu na nuca
de Carlos da Inglaterra;
troco-a por um romance, troco por
um soneto;
por onze gatos Angorá,
por uma copla, por uma flecha,
por um cantar;
por um baralho incompleto;
por uma navalha, um cachimbo, uma sambuca…
ou por essa boneca que chora
como qualquer poeta.
Troco minha vida —a fiado— por uma fábrica de crepúsculos (com arrebóis);
por um gorila de Bornéu;
por duas panteras de Sumatra;
pelas pérolas que engoliu a pálida Cleópatra–
ou por seu narizinho que está em algum museu;
troco minha vida por lâmpadas velhas,
ou pela escala de Jacob, ou pelo seu prato de lentilhas…
ou por dois orifícios minúsculos
— nas minhas têmporas — por onde quer que me escape, em cinza podre, toda a fartura, todo o aborrecimento, todo o horror que guardo em meus odres…!
Jogo minha vida, troco minha vida.
De todos modos
já a perdi…
PROSAS DE GASPAR
XIX
Minha verdadeira vocação é o silêncio. Meu vício incoercível, a aridez. Meu único crime, a solidão.
O riso ou o sorriso ou o rictus: tácitos glosadores dos fenômenos circundantes e do espetáculo grotesco. Tácito, porque não é sonoro meu riso— tumulto latente.
Ah, as intraduzíveis provocações! Ah, a nunca espetada ironia! Ah, o sarcasmo suculento, a afiada gorja, o álacre golpe, o comentário acre, o peregrino escólio! Tácitos. Nunca ouvidos.
***
Uma vez sonhei em ser um caçador de perigosas hamadríadas, de oreadas e de faunesas, e até de ninfas que não habitam as florestas ou ribeiras, mas ninfas da cidade, muito sedutoras;
Delas apaixonadas, delas um pouquinho frias, algumas sérias demais, outras extremamente frívolas;
Delas leais, francas e verdadeiramente rendidas, delas traidorazinhas ou apenas inconstantes ou só volúveis:
Apaixonadas pelo amor, e seus jogos supérfluos, estoutras do segundo singularmente, acaso no mais certo e válido;
Aquelas outras fixadas por redes e redinhas de preconceitos e temores: mas que se doavam e completamente, em intenção e pensamento, de onde se deduziram êxtases muito saborosas, um pouco enervantes a longo prazo.
Em suma, o eternal processo amatório de todos os séculos, desde Eva e Lilith (passando pela pródiga teoria, passando pela aromática guirlanda venusiana das donas ilustres e damas galantes), até as vampiras fatais de hoje, absolutamente parecidas com as ingênuas, ou nem tanto, burguesinhas, ou as cruas e apetitosas musas campestres.
E sonhei ser caçador de féminas sabidoras, pelas florestas de símbolos e emblemas, pelos meandros dos mitos, pelos labirintos das lendas e sagas.
Mas minha verdadeira vocação é a solidão. Meu crime realmente é a aridez. E minha única desculpa é o silêncio.
O riso ou o sorriso e o rictus: tácitos glosadores, arquílocos benevolentes e zoilos que assurdinam a leve incredulidade.
***
Outro tempo fui leogrifo, e outra ocasião menestrel de longa distância, e uma vez tive que me aventurar em territórios proibidíssimos, atrás da música e em busca de poesia: Dianas extremamente ciumentas que me crivaram com seus venablos – mas meu único vício é silêncio, a solidão minha vocação, e aridez meu crime.
Aridez, fino manto, vulnerável casca tênue: para resgatar — talvez — um espírito assaz emocional.
Silêncio, joia de músicas recônditas.
Solidão, com os amigos mudos.
Mudos amigos: cuja silenciosa melodia através dos olhos se infiltra e se instala na imaginação. Mudos amigos que outro sonho distante criou. Mudos amigos que engendraram o próprio sonho, se não forjados pela fantasia, e vivos —oh, tão reais!— não como aqueles que esbarram em mim ou que discorrem sobre do meu tédio.
Solidão, com os mudos amigos; aridez, fino manto; silêncio, joia de músicas recônditas, floração de memórias, divagar…
Ah, as nunca provadas elações nascidas do silêncio! As sortílegas músicas que a solidão condiciona! E o frescor espiritual que a aridez traz: fruição de silencioso encantamento, inebriante acinesia de extático e eufórico retrogosto!