Curadoria e tradução de Floriano Martins
Miguel Márquez (Venezuela, 1955). Escritor, poeta, editor. Criador e director da Fundación Editorial El Perro y La Rana, importante casa editorial em seu país. Autor dos seguintes libros de poesia: Cosas por decir (1982), Soneto al aire libre (1986), Poemas de Berna (1991), La casa, el paso (1992), A salvo en la penumbra (1998), Linaje de ofenda (2001), La memoria y el anzuelo (2006), Fragmentos de la batalla (2010), Poemas de la independencia y el escarnio (2010), Reserva y esplendor (2011), Trinitarias de la cara y el envés (2014), Campana en el fondo del río (2015), Creyones sobre el asfalto (2016).
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A esta altura do jogo, minha relação com a poesia é muito diferente daquela abordagem inicial de muitos anos atrás. Hoje, aos sessenta e cinco anos, posso afirmar que em retrospectiva tem sido uma relação fundamental, ou seja, decisiva ao nível da fundação, da raiz, da arquitetura de suporte e do respiradouro, por um lado, como bem como, por outro lado, de enigma mobilizador e sinal evidente do que fica balbuciando.
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Não foram poucas as voltas em que me envolvi pela poesia em relação à matéria intangível de seus versos e tenho certeza que esta aventura foi a mais importante que descobri com a palavra e que me levou por diferentes áreas: a inesgotabilidade dos signos, os contornos surpreendentes da enunciação, as afinidades secretas dos versos, a ética da contemplação, a exploração de caminhos inusitados, a experimentação como desafio permanente, a reflexão, o estudo, a escuta, a ideia da viagem mítica e a leitura do tantos poemas do mundo que parecem resumir o belo, o terrível e o inexplicável da vida.
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O trabalho sustentado com a palavra significou ao mesmo tempo a certeza metafórica e temporária com que podemos avançar em meio à instabilidade, ao caos, ao angustiado, ao imperdoável. Acho que é a isso que Rilke se referia em sua carta a um jovem escritor, onde fala da poesia como uma necessidade: a necessidade de escrever poemas porque só assim se pode viver. É o meu caso.
Miguel Márquez, 2020
[MERGULHO OS LÁBIOS NA MEMÓRIA]
Mergulho os lábios na memória
E encontro ilhotas, grandes lagoas brilhantes,
Aves pernaltas que são palmeiras,
Samambaias que são pássaros,
Fantásticos silêncios da solidão,
A luz da lua se enrosca entre os galhos,
As serpentes pendem das árvores
Mais altas e é precioso seu canto às estrelas,
Olho para trás e fecho uma briga
Feroz entre dois animais que não reconheço,
E ao meu lado surge uma jovem nua
Desde o azul cobalto, e me fascina
Seu corpo, e me deslumbram seus olhos.
[SE ALGUÉM FUMA A TERRA SE MOVE]
Se alguém fuma a terra se move,
Micróbios com bactérias, cristais,
Com a fumaça as janelas são paredes,
Brancos fulgores sonâmbulos,
Relâmpagos de Singapura ou da Grécia,
Alguém fuma seu espírito na Hungria,
Botas sóbrias com o mito de Trácia,
Lábios secos do inverno, dívidas,
Contigo a fumaça por trás do abandono,
As silhuetas descansadas de um quarto,
A projeção sem fim de um solilóquio.
[A PELE SE ESCONDE DEBAIXO DAS ÁRVORES]
A pele se esconde debaixo das árvores,
Os lagartos insones passam de um canto a outro,
Que esperança pode haver esta noite, que
Possa trazer a chuva que não conheçam os pássaros,
Um morcego, uma vez passada a idade dos nervos,
Confronta a absurda dureza das paredes,
Cai ao chão e as formigas celebram, os vermes,
Fala um vão com o bico destroçado, uns focos
Apagados entre a multidão dos vagalumes,
Corpo frio, congelado, enquanto, a faca limpa,
Lhe abrem aos pares o espinhaço dos presságios.