Curadoria e tradução de Floriano Martins
Grande Mãe, Yolanda abrigava tudo e todos: o visível e o quase imperceptível. Nada de humano era estranho para ela, diríamos, e o ditado nunca foi tão bem colocado. Se não estava apresentando um livro novo, estava comentando uma exposição pictórica, enquanto certamente em sua cabeça estava girando o texto de alguma resolução municipal para cuidar de sua amada cidade, ou projetando mentalmente a partitura para as incontáveis conferências. Preparando a viagem e a apresentação? Lendo as notícias sobre a situação no Oriente Médio? Correndo para a reunião para discutir as reformas na educação? Respondendo a uma carta de um querido amigo? Traduzindo os versos de seu companheiro de vida? Comprando velas para o enterro de um poeta, enquanto o coração dolorido a impede de proferir palavras para a ocasião? Visitar outro poeta no hospital?
Mas, nesse maremagnum, onde, quando e como ela exerceu seu ofício de escritora? Ou seja, ao ler? Ao escrever? Quando o angustiado busca a palavra? Como sua obra poética e narrativa, esses Vários Escritos desenham Yolanda Bedregal como escritora profissional. E esse trabalho é sério porque escrever é sair para nunca mais chegar, a vida vai em busca e essa é a angústia. O primeiro documento deste Volume é uma bela carta, escrita em sua adolescência, época em que balbucia o que mais tarde será apreciado como sua própria voz:
Gosto do absurdo, do inútil, da falta de razão. (…)
…Naufragado. Ou algo se afunda em mim. Eu gostaria de escrever um livro que é chamado de Naufrágio. Eu nunca vou escrever um livro assim. Eu não vou tentar salvar nada do naufrágio. (4:21)
Yolanda ignorou sua voz núbil, ela se traiu: escreveu Naufrágio e salvou muitas das águas da vida. Além disso, ela fez dessa desobediência uma razão para a vida:
Para mim, portanto, o trabalho de escrever e, assim, abordar os outros é uma tarefa que me cabe entre as obrigações que todos temos. (4:84)
Porém, apesar desse sacrifício, estou convencida de que Yolanda soube ir aos lugares maravilhosos e horríveis, deslumbrantes e malditos da palavra:
Poesia é, portanto, uma zona de magia. Nela existem feitiços que só são explicados com uma lógica própria, diferente, mas válida. (4:56)
A imagem se completa com a escrita da forte Yolanda Bedregal, aquela que disse o que disse de Adela Zamudio em seu discurso de entrada na Academia, aquela que segue os passos de poetas e pintores. A admiração pela obra, a vida e a morte de Antonio Ávila Jiménez e Edmundo Camargo e Jaime Canelas. Tampouco o amor –contam a plenos pulmões– pelas obras de Gabriela Mistral e Santa Teresa de Ávila.
VIRGINIA AYLLÓN
VIAGEM INÚTIL
Para que o mar?
Para que o sol?
Para que o céu?
Estou viajando hoje
em viagem de regresso
em direção àquela palavra sem margens
que é o mar de mim mesma
e seu esquecimento.
Depois que te dei mar e céu
Fico com a terra da minha vida
que é doce como argila
úmida em sangue e leite.
Agora me sobra tudo que eu tinha
porque sou como aquário e como rocha.
Peixes ágeis navegam em meu sangue
e em meu corpo se enredam as raízes
de umas plantas violetas e amarelas.
Eu tenho nas costas feridas
cicatrizes de asas inúteis,
e em meus olhos ainda há um pouco
dessa umidade inútil das recordações.
Mas o que tudo isso importa agora?
Quanto estiro os braços e não há nada
que não seja eu mesma repetidamente.
Acaso não sou mar e não sou rocha?
Mistérios de cores em minha vida
Sobem e descem em altas marés
e estranhos animais e demônios
se fingem anjos e samambaias em minhas grutas.
Também estão o mar, o sol, a terra.
Agora que voltei de um amor imenso,
tenho enfim na palavra sem margens
o que poderia caber entre suas mãos.
OLHOS PARA O PRANTO ALHEIO
Deixa-me chorar o pranto de todas as tuas solidões
e de todos os teus cansaços.
Sempre chorei abandono e tristeza dos outros,
meu amor nunca foi meu amor.
Estava sempre cobrindo feridas abertas por outra mão.
Minha vida nunca foi minha.
Cada vida é minha, eu sou de todas as vidas.
Não será minha a minha morte.
Nem ela eu tenho como minha! Todo mundo morre em mim.
Eu choro apenas o pranto alheio e a dor dos outros.
Amanhã terás que me esquecer, assim como ele me esqueceu.
Eu tenho em mim, senão de mãe;
todos choram em meu colo e eu sempre choro sozinha.
Será que eu rejeito o filho
eterno que dorme em mim e seu lamento obstinado
é um gongo de negação?
Choro por todos os homens em fadiga e solidão.
Nada é meu! Nada é meu!
Nem minhas ânsias, nem meu filho, nem minha vida, nem meu amor.
Sobre o Cosmos surdo eu choro
fadigas e solidão.
JUAN GERT
Meu sonho se transformou em um doce limão.
A abóbada perfeita do teu crânio
aninhado na borboleta dos meus ossos
é uma tulipa frágil
coroando as asas abertas da pelve.
Trazes o molde para o mundo
em minha breve cintura;
recolhido e devoto como uma oração,
fias com meu sangue o universo,
filho meu.
Cresces dentro de mim
como em um vaso ritual.
Graças a ti conheço
a humildade de ser uma terra fértil,
graças a ti o orgulho do milagre vital;
graças a ti eu sou uma urna bíblica,
graças a ti eu sou comunhão e penitência.
Graças a ti a morte embala em sua medalha
perfil de pedra em querubim enevoado.
A tulipa viva de tua cabeça
Uma vez mais retira o molde do Universo.