4 Poemas de Silvia Guerra (Uruguai, 1961)

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Curadoria e tradução de Floriano Martins

Silvia Guerra (Uruguai, 1961). Poeta, pesquisadora e conselheira da Fundação Mario Benedetti. Atualmente é, junto com Claudia Magliano, editora do projeto La madre del borrego. Entre 2009 e 2011, coeditou a editora La Flauta Mágica. Selecionou e prefaciou El río y otros poemas, de Amanda Berenguer para a coleção Clássicos Uruguaios (2011). Compilou e editou a edição crítica da obra reunida de Nancy Bacelo, El velo magistral que esconde todo (Fundación Nancy Bacelo, 2011). É coautora (com Verónica Zondek) dos livros de correspondências entre Gabriela Mistral e escritores uruguaios, El ojo atravesado, volumes I e II (Lomdiciones, 2005), e do livro de reportagens Conversaciones Oblicuas / Diálogos entre la cultura y el poder (Caracol Galopante, 2001). Silvia também escreveu Fuera del relato. Una biografía aproximada de Lautréamont (Bassarai, 2007) e Historias de un pueblo que dejó de serlo (Editores H, 2014), contos infantis baseados em acontecimentos históricos de Maldonado. Em 2012 foi galardoada com o Prémio Morosoli de Poesia pela sua trajetória. Seus últimos livros de poesia incluem Un mar en madrugada (Antología, Hilos editora, 2017); Todo comienzo, lugar, com José Kozer (Editorial Casavacada, 2016); e Pulso (edições Amargod, 2011).


ÁTROPO

Não é meu.
Nem de ninguém. Nada.
Mechas, folhinhas. Vento de folha seca.
Na manhã azul, a brisa branca e a saudade perversa
O que quer mesmo ir, cabeça, o rosto com eczemas, ao vento.
Desce por essa corrente ensolarada clara e precisa
no perfil, no centro atroz da figura.
A água no olhar que enfrenta a si mesmo e é rosto sem alma
que escapa para encher de silêncio aquele outro rosto
para enchê-lo com o fio libado dos sonhos, na névoa.
A sombra sem nada atrás, sem corpo para refletir, a pura sombra.
A sombra pura que estropiada de si consegue se estender, agarrar-se
no chão, cobrir a heroica superfície agreste
Beber no deserto como um canto como um som prolongado,
uma turvação oca do cobre central, dulcíssimo
metal, que envolva.
E lá fora, entre as casas, dispersamente distantes
conjunto de hábitos, toalhas de mesa, pequenos teares enfurecidos
de gardênias. E lá fora, ao longe, a tarde que se curva
as primeiras estrelas. Para sempre?


LÁQUESIS

É um prisma. É um prisma que gira.
É um prisma que fragmenta a luz, decompõe-na.
A luz é um sonho.
É um sonho, a luz que se repete.
É um espaço verde, que foi feito
Há dois amordaçados na luz
no verde preciso.
Gira o prisma uma vez e já será tarde.
Gira uma vez a luz e há um sapato suspenso na
esquina um bando de aranhas verdes, quase transparentes
que caminham com o dorso em chamas
sobre um tecido quase transparente
que não deixa respirar quem de certa forma
quase transparente
começa a queimar.
Lá fora, alguém pula tentando olhar pela janela
mal bateu no vidro, uma marca de sangue.
E é a luz, os tons iridescentes da angústia.
Crepitante, desde a chuva verde
Quase transparente.


OLHO DE ÁGUA

No campo tranquilo a madrugada dorme
teu nome está ali escondendo a sombra
como um eco esfregando com a haste os vimes
metálicos que nos galhos trazem listras de
luz no cuidado imóvel da água reclinada
nas folhas dos choupos doces. Chega até
aqui como a mesma sombra e enaltece
o músculo sem nomeá-lo, outro golpe no pulso,
finíssima ramagem queimando, algum pássaro canta
ou gorjeia, ao longe – avisando – sinistro. Em algum lugar
a chuva começa, deliciosa.
E quando o branco da madrugada tinge as linhas
e o ar da lagoa soa entre as folhas
é Alma, estremecida, pronunciando
meu amor a linha única. Sem pássaro
Teu nome.


SONHO COM ANJOS

Os anjos chegaram em um navio cargueiro
María Baranda

Um navio carregado de anjos navega pelo sonho. Eles vêm em caixas de madeira, em caixotes feitos de tábuas salvas de um naufrágio.
Os marinheiros os veem comendo flores em seus troncos como prisioneiros andróginos de uma mudez de ostra.
Seu destino é um mistério. Não se sabe se serão vendidos a um zoológico, um circo, um aviário, um taxidermista, um negociante de asas.
Por se tratar de um contrabando estranho – embora não existam leis marítimas que proíbam o transporte de anjos em navios – por se tratar de um tráfico de sonhos, o capitão evita atracar nos grandes portos do mundo.
É como se o navio estivesse condenado a nunca ancorar, a viajar sem destino com sua carga emplumada e melancólica. A cada dia os anjos maltratados em suas caixas apodrecidas cheiram pior, a pústulas e almíscar. O navio se torna um fantasma na névoa, apagando suas luzes e vozes. E a tripulação começa a ficar impaciente, começa a ficar impaciente…

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