5 Poemas de Carlos Latorre (Argentina, 1916-1980)

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Curadoria de Elys Regina Zils
Tradução de Floriano Martins

Carlos Latorre nasceu em Buenos Aires em 1916. Faleceu na mesma cidade em 1980. Participou da criação e produção da maioria das revistas ligadas ao surrealismo: A Partir de Cero (1952), Letra y Línea (1953) e Boa (1958). Ele pode ser considerado um dos mais ativos promotores dessa tendência estética na Argentina, junto com seu amigo Aldo Pellegrini. Foi responsável por gerar uma adesão contagiante em diversos poetas que participaram das publicações e grupos de vanguarda durante os anos 1950. Escreveu diversas peças e roteiros para radionovelas e filmes com os quais conquistou importantes prêmios nacionais e internacionais. Publicou os seguintes livros: Puerta de arena (1950), La ley de gravedad (1952), El Lugar común (1954), Los alcances de la realidad (1955), La línea de flotación (1959), Las cuatro paredes (1964), La vida a muerte (1971), Las ideas fijas (1972), Campos de operaciones (1973), Los puntos de contacto (1974), Los temas del azar (1975), Cabeza o triste páramo (1979).


RAIO DE AÇÃO

Tudo é belo do princípio ao fim
A meia noite com duas voltas de noite
A realidade por todos os poros e alguns buracos de bala lograda mediante a eficácia de certa beleza com o passar dos séculos com o passo trocado e alguma ideia fixa
A beleza dos ocasos de vidas perdidas de plenilúnios de preamar de meios justificando os fins
E a evidência da realidade de certa realidade de beleza de certa beleza e seu antigo cerimonial documentado por toda poesia que mete os dedos nos olhos os olhos nos dorsos dos barcos para ver passar o tempo durante o fluxo e refluxo das mãos sempre vazias as mãos no vazio ou seja onde começa o espaço destinado a cada corpo quase tão belo como seu vago conceito


A CIRCUNVALAÇÃO DE MIM MESMO

Recordo que não existem saguão ou corredor,
nenhuma dessas longas antessalas da honra
e da família
onde começa a ser sentida a evidência da tristeza
ou seu equivalente em mortalidade.
Era uma casa,
melhor,
uma hélice de barco que empreende viagem desde a habitação do nascimento
até esse âmbito onde se supõe seja possível crer e viver sem restrições.
Fora,
uma rua arborizada sem essa perfeição que tem a selva quando ninguém a habita
ou em seu defeito,
quando arde pela fricção do fôlego sobre o que se torna impossível.

A cidade não chegava ali além do espaço onde tudo sucedia,
por então,
com impunidade;
até essa rua da qual procedia todo bem
ardente e secreto como uma corrente de ar quando vai desatar a tormenta.

Caída já da tarde surgia uma intensa escuridão que preparava os olhos para o descobrimento,
para o que encandeia,
para o que,
desafortunadamente,
nunca sucede;
algo assim como o desejo para uma amante que perdeu a partida.

Agora,
o tempo é esse penetrante cheiro a distância
e a infantil carpintaria,
restos de bosque consumido por excessos e entusiasmos.
Voltei a ver as pedras gastas em mais de um lugar.
Os cães urinavam sobre elas para compensar a ausência de água de céu que não sei bem se vivi
ou se sonhei,
o que vem a ser o mesmo.
Estava também a árvore de que falei,
creio que no começo,
porém não a sombra que projeta a meia noite
mas sim o que de meu próprio corpo ainda é possível nele reconhecer.


ARTE POÉTICA

A palavra busca céu como pássaro que cruza o entardecer sem deixar canto ou rastro,
frágil andorinha fugaz em busca do eterno verão,
que em ocasiões morre sepultada em neve de inverno de outro hemisférios.
A palavra se projeta como alameda que lança remota flecha de horizonte,
desafortunadamente desmoronada a tiro de pedra.
Em ocasiões cai em sulco de vida fértil,
às vezes faz pé em terra árida
ou esburacado envolto em bandeira de névoa de pântano empestado.
Mas o que apodrece não é sua intenção reveladora
mas sim a sua envoltura de borboleta fatalmente letal por força de beber venenoso conceito,
explorar hermético labirinto ontológico
ou habitar falso reino ideativo.
A palavra descreve paisagem semântica,
poucas vezes para marítima,
vida viva,
folhagem azul,
fonte de água pura,
nem outra beleza criada em sol de amanhecer,
noite
ou tarde de chuva.
Quando a palavra fala de amor costuma amar seu eco estético,
seu canto de Onã obsessivo
ou ritmo próprio;
mais,
muito mais do que imagem corpórea
ou analogia,
mais do que pele de mulher,
seja adolescente
inocente
ou triste rameira.
No entanto a palavra é Verbo,
ação,
para-vida,
metalinguagem,
própria meta que algum dia terminará por ser alcançada,
sábia
e desnuda
de toda estúpida convenção
ou servilismo.


OS FOGOS ACESOS

É um ar de canção antiga
este que traz o vento que abandona já as covas onde fora cobiçado junto com as soterradas formigas do inverno.
Chega a primavera com sua escolta de aroma silvestre e de cigarras prematuramente alertadas pelo clima.
A pele se despe abrindo a fralda dos sentidos para saborear o gosto da grama humedecida sobre a qual ainda se desenha a silhueta dos corpos do amante
e da amada
que fugiram perseguidos pelo frio.
O musgo dos túmulos sacode o negro betume das geadas entregando-se ao sexo do sol que sempre é dourado por mandato da fecundação
e o costume sadio de acalentar os ossos do ser vivo entre os vivos,
do ser morto
por falta de justiça entre os vivos.
E primavera e resulta surpreendente merecê-la.


OS MÓVEIS SECRETOS

Da noite e da tormenta provém a mulher.
Flora tantálica,
fauna impensadamente homicida,
nos rodeia com o poder dos braços que lhe é próprio
e crispa o encarcerado coração do homem que também é seu por direito natural.
Alguns se defendem;
ensaiam conjuros como aqueles que negam a magia vermelha de seu feitiço com uma cor mais negra,
então a noite cúmplice intensifica seu matiz sombrio
e mais e mais radiante
e cativante
contrasta o que suspeitamos seja sua imagem imposta ou salvadora.
Erro fatal.
Assim contribuímos com o nascimento da hipnótica boa que nos devorará com gula de criatura predestinada a viver às expensas de sua atração,
juntamente com seus filhos.
O mandato não lhe é alheio:
a carne cumpre nela seu ofício mais perfeito.

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