5 Poemas de Fernando Charry Lara (Colômbia, 1920-2004)

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Curadoria e tradução de Floriano Martins

De algum modo me seduz a opinião de Arnold, de que o poema é irremediavelmente uma crítica da vida e da sociedade. Porém sempre desconfiei da chamada poesia política. Em primeiro lugar, por sua ineficácia. E sobretudo por esquecer seus deveres para com a própria poesia e estar a serviço, no mais das vezes, daqueles que, como a maior parte dos políticos profissionais, propiciam com sua irresponsabilidade e suas traições o prolongamento indefinido de tão desolador estado. E, quanto ao mencionado problema da “obscuridade” ou “claridade” dela, sendo que os poetas “comprometidos” advogam por esta última, julguei mal proposto porque, se é indubitável que a cultura deve estar ao alcance de todos, não é menos certo que seu verdadeiro fundamento reside no trabalho, com frequência secreto e esquecido, dos intelectuais, dos artistas, dos estudiosos. Depois observei umas palavras de Trotsky: “A revolução logrará conquistar para todos os homens o direito não somente ao pão como também à poesia”. Desafortunadamente, até o dia de hoje não foi possível confirmar no mundo esta esperança.

[…]

Na medida em que se intensificava o amor pela poesia pude constatar simultaneamente a aversão, que até hoje persiste, pelo que nela possa ser tomado por “literatura”. Esta me pareceu mais produto da habilidade ou, no melhor dos casos, da cultura. A poesia, em troca, se me figura uma operação mágica. Daí a atração que não deixaram de exercer as teorias surrealistas, com sua idolatria do maravilhoso, mesmo que os textos que as seguem, em francês ou em espanhol, não me tenham deparado, senão em raras ocasiões, essa mesma devoção. Não deixaria de ser freio a esse entusiasmo uma objeção como a de León-Paul Fargue: “a poesia é o único sonho no qual não se deve sonhar”. Ou a suspeita de que consiga ser verossímil a abolição da consciência artística na escritura automática. Outro assunto que me preocupou, ligado ao anterior, foi o de imaginar, já que a poesia não deve ser literatura, o que é próprio, ou ao menos o característico, dela. Somente muito mais tarde entrevi que, quanto à sua forma, acaso chegue a considerá-la como uma ordem inalterável de palavras igualmente não suscetíveis. E quanto a seu propósito ou destino, desde o princípio me pareceu imaginar que ela tenta suscitar uma emoção em quem a leia (oral, desde já, a descarto), estabelecendo com ele, como presumem vários críticos, uma espécie de comunicação direta. Mais precisa, sintética e comovedora do que a que costuma se dar através da prosa. Uma comunicação que não contém necessariamente domínio dos sentimentos. E que, ao invés disto se estendendo até o psíquico, muito menos tem a ver com o francamente conceitual. Desde Novalis, segundo se recorda, a lírica é a única coisa a que se pode conceder o nome de poesia. Me inquietava também a diferença que o espírito moderno estabelece entre o sujeito poético e o eu empírico: o artista que cria como ser distinto do homem que sofre ou goza. Como conciliar esta advertência, que o poeta jovem julgou atendível, com uma larga tradição de poesia sentimental? Apenas o transcurso do tempo nisto poderia lhe ajudar. De tudo isto se podia concluir o caráter essencialmente expressivo da poesia. E alheia também a todo tipo de estilo, pensamentos e sentimentos “elevados”, como a crítica tradicional colombiana insistia, insiste ainda, em considerá-la. E estranha também o “poema em poeta”. Ou o jogo verbal, o adorno, o engenhoso, tudo isto aliado ao efeito impressionista das sensações.

FERNANDO CHARRY LARA / Fragmentos de Sobre mis primeros poemas, texto escrito em julho de 1985 e incluído na edição de sua obra completa, Llama de amor viva. Bogotá. 1986.



O IRMÃO

Sobre o sepulcro passa um dia e outro dia,
Junto à pedra fria se mudam as palavras,
O pesadelo e o sonho no entardecer nos confundem.

Recordo, recordo enquanto
Nas casas invade a solidão
Como música ou mar.
O pó estaciona silencioso,
Se fazem mais largas as pausas
Íntimas até o mudo desconsolo insaciável.

O tempo escuro não regressa com suas ruas
Iluminadas após o beijo da chuva.
Nem regressam os vastos corredores
Adormecidos na ausência de uns passos
A recolher, sonâmbulos,
Teus pés desnudos como frias pétalas.

Ninguém te espera a não ser o que foi sob minha pele,
Ninguém te espera
A não ser minha lenta morte e meu desespero.

Salva-me em cada minuto da vida
Com a presença de tua sombra esbelta,
Solitário na tarde, irmão morto.
Nos dias futuros e desconhecidos,
Quando o abismo entre o céu e a terra
For como a tarde depois de uma batalha
E o que se acreditava em repouso
Fizer brotar as lágrimas.
No noturno lugar sem uma voz,
Entre a multidão como náufrago sem costa,
Com a impossível lembrança de uma festa,
Cambaleante como o bêbado triste,
Submerso em meu coração,
Na solidão,
Pensarei como penso agora em ti,
Nos dias que virão, nesta melancolia
Cotidiana hora,
Em ti pensarei como agora.

Não posso calar e sim morrer
Quando no dia imenso,
Quando diante do infinito céu
Recordo o passo do tempo
Como passo de chama
Devorando tudo.

Encontrar teu rosto no espaço,
Reconhecer em teus lábios meu silêncio e em teu contido
Gesto o profundo de meu desejo.
Buscar a morte, tua ou minha,
Olhar-me lentamente,
Chorar por mim só por um momento.
Não é nada, é o de sempre.
Com os olhos fixos na distância violeta
Belo é ser morto e comprovar o destino:
Assim saberei que me acompanhaste com tua sombra
Quando mais a sós me acreditava,
Assim saberei
Que era também teu eterno meu desejo
Constante da solidão sem fim até na morte.

Sim, surge tua estatura com uns passos surdos
Que fazem crescer o silêncio.
Uma grande sombra invade onde caiu teu passo.

Estás na chuva sobre o campo submisso,
No vento que rompe as velhas janelas,
Nesse passo do tempo também em uma chama
Percorrendo a deserta extensão sem repouso.

Estás aqui, seguro eu de teu viver.
Poderia agora te ouvir, pulsar, insônia para meus ouvidos.
Não duvidaria de tua existência encerrada, afogada em minha febre.
Creio em ti por estes ossos com os quais debilmente me arrasto
E que dão conta de minha paixão.
Creio em tua sombra ao meu lado
Demasiado próxima de meu sonho, demasiado longe de minhas mãos.
Liberta-me desta vida que não é minha porque não tenho
Onde abandonar-me ao teu encontro.
Dá-me a fortaleza necessária a meu combate
Oh deus no espaço como a mais branca nuvem.
Escuta-me, te escuta em minha boca.
Pronuncia a mais profunda palavra às minhas lembranças,
À minha ansiedade, à minha memória em ti.
Roça no ar uma música como dedos alaúdes,
Regressa-me a uma idade secreta como o amor.

Chegam teus passos como tormenta remota em um lugar
De abandonadas sombras fixas nos muros.
Chegam pesadamente e logo dissimulam com firmeza
O silêncio que essas quietas sombras impõem.

Chega, chega sempre e regressa
No mais profundo suspiro da noite para meu desvelo.
Desperta para meu noturno clamor como para beijo a carne,
Como para distante astro a amante solitária.

Estendido teu corpo repouse finalmente
No silêncio de uma margem deserta, bela entre
Os resplendores de um sol estranhamente lívido e eterno.
Mas chega, chega a última noite de minha vida, a tua,
Reconquista-me para teu nostálgico reino pálido.
De entre os homens resgata-me
Para tua crepuscular ilha
Desnuda e única ante a ressonância do mar.


VIAJANTE

A estranheza do lugar ainda que
O imaginasse. O interminável do instante
E o áspero. Um comedor vasto como o fastio.
Mas aqui, em repouso,
O mudo mantel, o entardecer
Junto à sombra
Das lembranças no rosto.
Obstinada a hora
Lhe encerra, solitário, e ao irmão
Que chora sob seus pensamentos.

Um lugar sempre alheio como o amor, um lento salão
Que aos fantasmas da viagem, em bandos,
De súbito aparece com lâmpadas e memórias.
Conversações, asas, palavras apenas
Rumor em torno. Uma colherada
Aos lábios com um remorso
E sobre a mesa, imóvel, desconhecida
A desolada brancura de suas mãos.

Quisera despertar de entre os mortos
Enquanto a hora sordidamente foge.

Pensa nisto enquanto ao seu redor
A mosca do sonho, o jornal,
O volume ardente de uma fralda,
Não importa
Que corpos ou olhares, a tenaz
Onda de melancolia também
Lhes chega,
E em procissões noturnas
Os hóspedes não dormem mas avançam
Com equipamentos, entre espelhos e brancos uniformes,
Sorridentes, solitários, sonâmbulos,
Por queixadas, a pé, aluados,
Ao subterrâneo final dos trens sem ninguém.


A VOZ ALHEIA

Caí em teu branco corpo de repente
Tocar tocar a pele cintilante entre a escuridão
O fogo junto a uns lábios entreabertos
Os braços ávidos estreitar seu nu
As mãos o roçar da cabeleira negra excitada
Essa estrela ou relâmpago quieto em seus olhares
A amante que lânguida passa tremendo
Tudo era e tanto a sós um momento

                                Porém tudo se extingue
Quando a voz alheia
Quando a voz quando o estranho
No interior silencioso atrás da porta
Com um pressentimento de jasmins
E um corredor onde a sombra e o sonho

                                  Tudo era e tanto a sós certo
Porém então a absurda conversa inesperada
Enquanto unicamente calar querias
E o fastio o vazio de outro ser ao teu lado

                             E a palavra
A palavra do intruso que desfez
Tornada cinza a luz daquele instante


PALAVRA SUA

O prisioneiro de ontem também não esquece agora
Apavorados pendões de inverno os meses
Ser cinzenta e desgarradora garoa um vôo frio
Implacavelmente
Caindo hora após hora
Sobre seu
Desterro a sós

De tanto final acodem escombros dos anos
Vai voraz largamente invadindo uma obscura maré
Esse humano rancor por entre corpos ruas vozes
Ficando à parte ao menos
Secreta
A quimera
Alguma vez enfeitiçada
Viva contra a vida que nunca foi sua vida
Quando morosa morosamente
Tal mão sobre cabeleira adormecida
Uma extensão percorre
De imagens desfeitas na areia
E é como aquele a quem em púrpura acende
Retorna sua palavra
Chuva de sol ou labareda

Não poderá recordar como ao acaso de imediato
E entardecendo
Ao já não ser ele mesmo
E a seus passos as ruas sem ninguém
Essa palavra sua
Mais que sonho
Desde então lhe seria queimadura


PENSAMENTOS DO AMANTE

Já que a intimidade a noite a criatura
O homem que a sonha e ao sol com sangue da tarde
Quando por corredores de azulada pedra
Os passos que agora esperas
Em vasto espaço alargado silenciam

(É mais profundo o amor que ninguém nomeia
Mais amarga a desventura de um espelho
Quando de repente lhe embaça lenta exalação
De uma tristeza distante de alguém
Que ignorado cruza errante o vazio)

O arco das sobrancelhas com um raio
A multidão do ouro os ombros no branco
Um rio subterrâneo entre seu peito
As coxas lentamente donas da terra
O olhar que em um duelo trêmulo estalava

Vencida pelo tempo a esperança
Um caminhar perpétuo entre a chuva
Na cidade de nuvens e agonias
Contra tudo e sem fim seguir-te sempre
Oh frio roçar de invisível chama

(Por que retrocedias e silenciavas
Te imaginavas tremendo como uma criança
Lamento entrecortado em tua garganta
Devorado na rede de uma treva
Entristecido por teu próprio sonho?)

Depois por ásperas ruas a alvorada
Trouxe ao acaso indecifrável um rosto
Ruivo fulgor e o frágil embelezamento
De em outro paraíso encontrar-te vivo
Longe do sol ocidental ensanguentado

Mas te perseguem a sede e o pensamento
A ausência te invade somente um corpo
Esse convulso perfil do desejo voando
Para nuvens onde são verdes os olhos
Onde implacáveis são verdes ainda e sombrios

Confusos giram tristes em sucessão os dias
Pálidos de garoas e incertezas
Quando junto ao anoitecer existes
Com penumbra de seres ao teu redor
Sua desdenhosa surdez impenetrável

Enrubesce delira Bogotá como incêndio
Que invade em luzes pessoas bulícios
Depois o ar noturno abrindo luas
E escondido no oculto um afã
Oh tu que ignorada cercas e estreitas e amas

(Somente em teu coração se passam as coisas
Unicamente ouves uma rouca buzina por teu sangue
O tempo acumulando-se em cinzas
Tornas a ver reflexos no entardecer
Na noite outra vez te adormecem mudos lábios)

Corpo que não caminha a não ser
Por constelações de incandescente desterro
Traz teus pés acostumados à aurora
Para pisar esta ilha de ninguém, esta porta
Onde o amor golpeia com fantasmas

(Não é o sonho e sim somos nós
Como o destino é áspero e contrário
A deserta esperança sem sustento
Em sono ligeiro fluem dias e pensamentos
Cadáveres de sol e chuva na memória)

Após sigilosos passos vozes ecos
                                                                     Eterna eterna vem
Gesto silenciando sombra que suspeita o ar
Porém ao desvanecer-se novamente tuas marcas
Como ao final o corpo será noite
Outra vez insondável tua luz fora do tempo

 

 

 

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