5 Poemas de José Lira Sosa (Venezuela, 1930-1996)

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Curadoria e tradução de Floriano Martins

JOSÉ LIRA SOSA (Venezuela, 1930-1996). Foi, autenticamente, um poeta e um homem surrealista. Desde os primeiros anos do ensino médio tornou-se devoto de seu professor e amigo Juan Sánchez Peláez. A sua poesia exalta a perturbação, a profundidade sensual, o espírito insondável das águas. É um mergulho interior onde nada para ou estagna. Publicou os seguintes livros de poesia: Fiat-Luz y otros poemas (1954); A la gran aventura (1960); Por mi cuenta y riesgo (1965); Oscuro ceremonial (1967); Vícios ceremoniales (1967); e Contracena (1981). Como dramaturgo, são citadas suas obras mais importantes: Círculo vicioso e La rebelión de los muñecos. Recebeu o Prêmio de Poesia Del Valle Labeau (1984).


VOZ CORTADA

A Juan Sánchez Peláez

nada brilha, nada reluz neste grito
o despojo amoroso de teu rosto caindo neste peito
adorável besta, tua máscara é uma nova conquista
ágil para a luta tua sombra é um archote
ágil para o amor tua mão é um archote
refreia o navio do novo descobrimento
em uma labareda
a frágil casca que apascenta minhas carícias
é uma labareda
apenas uma sob a noite
tua raiz violenta é uma máscara
recorda besta adorável,
tua máscara é uma nova conquista.

agita tuas garras consanguíneas
e que não escutem tua voz cortada
que não escutem teu sotaque desconhecido
nem o brilho reluzente deste grito
este grito
retorna em grandes passos à tua origem.


LAPSOS

Posto que nada será definitivamente lacrado
posto que o ritmo assombroso de tuas nádegas mantem
o feitiço nesta cidade costeira
posto que decidi buscar o tesouro oculto
nas dobras de teu sexo
posto que aprendemos estas fórmulas de memória
e anotamos em livros caixas um espelho despedaçado
uma imagem decomposta
o arco-íris da boneca abandonada na areia
posto que em algum momento começamos
pela cadência do gavião submersa na astronomia
transbordante de trovões e relâmpagos
onde tu és o vestígio da feiticeira
o sistema solar que acariciava o braço e o peito
sua garrafa quase vazia na penumbra
posto que tu eras então a promessa da água
a escuridão que pressagiava minha pele
invadindo a selva de luz negra
aperfeiçoando o jorro de terra e esperma
humilhando, sim, humilhando minha busca da mandrágora
meu regresso à idade média
Posto que no princípio eras favorável à oferenda
enquanto orbitavas até o medo
enquanto giravas até a porta de cristal refratário
retrocedendo ao virar a esquina
e logo aparecias e desaparecias em festa de aniversário
te prolongavas em meu cigarro
para finalmente descer ao centro da insônia
e tu eras a primeira figura do baralho
e eu o rio onde te despias
a ponta da língua
a saliva guardada muito além do branco lençol
Posto que talvez nada seja certo
eu me limito à sombra
a ser a sombra do que buscavas
a ser a sombra
do que buscavas
na loucura.


ESFINGE

Atado a tua órbita secreta
o porvir mitiga plumas irremediáveis
e amedronta
e prostra e ameaça
os jardins cativos
nos oráculos poupados por teu riso
Esfinge desconcertante
malversadora de ritos suspicazes
de palavras referidas aos metais
esquecidas as conjunções obstinadas
te limitas
a estimular pecados taciturnos
relíquias intermediárias da carne
que espreitam coordenadas siderais
O naipe favorável oculta
o arco-íris tributário do poema
e justifica as linhas de tua mão
Esfinge memorável
exalta esses tornozelos revoltosos
de Deusa infiel à balança.


ODE A ANDRÉ BRETON

Havia erguido uma sombra para rachar o meio dia
Havia tomado uma taça para sossegar o mistério
Havia percorrido em grandes bocados o caminho
Havia transitado corrido saltado
Havia dado pequenas voltas ao redor de todos os fogos
Dançado ao redor de todos os ídolos
Para topar contigo na floresta incendiada de tua meia noite
Negra O Encontro nos espreme o canto do pássaro
Não fere a crista a cascavel em suas acometidas mortais
Eu me empinei no cotovelo da Tour Saint Jacques para
Encontrar-te como um astro murcho
Em órbita sonâmbula cacheada de quinina e de curare
Tua presença de esfinge cinzelada de palavras
Flamejantes
De altos relevos balbuciados por Sade
Vociferados pelo adolescente satânico
Palavras gritadas em tua orelha pelo Conde sul-americano
Então Breton marcado na carne viva
Pelo relâmpago gigante brotado de teu dedo indicador
Recebi o golpe
Aprendi a caminhar às tontas no Labirinto.

Grande Bruxo Satã Milenário Ídolo
De língua de fogo Deus Nosso Pai
Fraternal Fala-me
Abandona as comarcas geladas
A tribo de ossos infernais
Abandona o círculo celeste onde emudece
Tua flauta de Pã
E derruba o muro que nos separa
Fala-me Fala
Curta com o facão reluzente de tua antiga
Palavra toda a luz e toda a sombra
Regressa à loucura furtiva
Grande Pai Pagão.

Lobo poético Fera Noturna de caninos
Retóricos sangrando entre tua gente
Eu amarro teu pescoço com uma liana ritual
e exprimo tua Voz Ergo sua espuma tormentosa
E bebo à tua saúde de animal convocado para
A cerimônia.

Escuta meu sotaque mestiço cruzado de rajadas inesperadas
Brotadas dos turbulentos cabelos esbranquiçados de Monagas
Domador de mistérios esqualo imediato
Feroz fabricante de imagens venenosas
Lava minha carne Lava minha pelanca.
E ressuscita a cada três dias o chicote de tua língua
Ziguezagueante em uma cova de ossos cinzentos
Escuta André Breton hoje eu te saúdo
Tocando madeira de doces cedros
Traçando quadriláteros efêmeros no ar
Dos tucanos
Eu te saúdo em torrente selvática dos formigueiros
Germinando em teu entusiasmo de chispas fosforescentes
Eu te saúdo Boa Noite Breton
Eu te saúdo com um Eco Selvagem renascendo nesta terra
Eu te saúdo em nome do Pai chamado Lautréamont e do Filho chamado Rimbaud e do irmão chamado Artaud Eu te
Saúdo sem consultar a Ninguém com todo o desrespeito que impõe tua órbita terrestre
Com o direito adquirido em tua Vida e tua Morte
(Tua morte morre de nostalgia
Tua morte moribunda de trevas e de sombras)
Conjugadas em um Ponto onde Vigília e Sonho
São também Um
Eu te saúdo velho com um golpe em tuas costas de montanhas
Coroadas pela neve
Um golpe de mãos na dobra inesperada do caminho
Um golpe de dados no tapete de tua fronde
Eu te saúdo.

Não conheço cinzas nem ossos nem vermes funerários
Mais propícios ao rito que os teus
Não conheço uma marca mais funda no lodo asqueroso
Da terra
Uma marca mais precisa no limo e no barro diluviano
Que a tua
Não conheço uma sombra mais bárbara e mais negra no Castelo
Nem um boné implacável como aquele de múmia prevenida
Que devias luzir no Banquete
Boa Noite Breton
Antes de regressar ao tumulto eu te saúdo.


TALISMÃS INEFICAZES

Nada de presságios
turvados pelos gestos
Nada de profecias andrajosas
recolhidas à beira do caminho
Nada de vozes ao calor
de lenhas sussurrantes
nas salas do sacrifício
nos saguões nostálgicos
no pelo abundante dos lobos
ancestrais.

Os fatos se reduzem
a uma lâmpada seduzida pela penumbra
Uma lâmpada dependurada na beira do precipício
Para purificar a chama lenta
O temor de cair na armadilha
De ser aprisionado pelo abismo.

Os talismãs perdem sua eficácia
desafiados pelo medo
a transformar-se em chaves
em pedras de toque
em portas abertas bosques inimitáveis
Somente o resplendor de teus olhos
o esmalte abatido de tuas coxas
ofertam o equilíbrio
de uma ebriedade perdida no paraíso.

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