5 Poemas de Manuel Ramos Otero (Porto Rico, 1948-1990)

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Curadoria e tradução de Floriano Martins

Uma das escassas conversas que mantive com Manuel Ramos Otero teve lugar na cafeteria de um hotel de Rutgers em uma dessas ocasiões quase folclóricas em que os porto-riquenhos nos reunimos para falar de nossa identidade graças aos fundos aportados pelo império. A perguntas suas disse que não, que não escrevia contos e, mais ainda, que pensava que ser poeta e ser narrador requeria estruturas mensais muito diversas. Manuel argumentou contrariamente à minha opinião. Então entendi que tínhamos duas concepções muito diferentes da poesia e, em geral, da literatura. E com efeito, falar da poesia de Ramos Otero resulta um tanto arbitrário pois se trata de um autor que questionou profundamente a noção tradicional de gênero literário. Sua poesia transborda o leito do vero e irrompe, com maior ou menor fortuna, no território de uma prosa narrativa invadida também pelas formas da escritura ensaística. Agora me limito, no entanto, a falar da poesia em um sentido mais estrito e formal, entendendo-a como a língua do verso.

Manuel Ramos Otero nos legou dois livros de poemas: El libro de la muerte, publicado em 1985, e Invitación al polvo, que apareceu postumamente, em 1991. Embora seja certo que ninguém concede a Manuel Ramos Otero um lugar notável na promoção de contistas que surge em Porto Rico ali pela década de 70, a verdade é que El libro de la muerte, por si só, não lhe assegurava um posto semelhante entre os poetas do mesmo período. Invitación al polvo, no entanto, o converte em um poeta destacado. Em suas páginas encontramos alguns dos poemas mais belos e comovedores da recente poesia porto-riquenha.

A poesia de Manuel Ramos Otero poderia ser catalogada como um discurso lírico-dramático de amor, morte e solidão. Nestes poemas, a solidão é a consequência de um amor sempre precário e fugaz cujas implicações sentimentais nunca estão em harmonia com a agressividade ideológica e moral de seu discurso. Se, como expressão ideológica, esta poesia é uma vigorosa reivindicação dos direitos amatórios da homossexualidade, como voz pessoal é quase sempre a comunicação dolorida e melodramática de uma pena de amor fundada na precariedade da experiência amorosa e no abandono da amante. O poeta assume a solidão como a condição de sua voz; fala a partir da solidão, recorda e recrimina, com nostalgia, um amor já fracassado. Também a partir da solidão pratica uma figuração da morte. Na poesia de Ramos Otero, a morte ocupa duas dimensões fundamentais: é, por um lado, a metáfora do amor defunto; mas é também certeza literal, pressentimento e anunciação.

JOSÉ LUIS VEGA / Agulha Revista de Cultura # 6. Janeiro de 2000.


AQUI SOMOS NEGROS DO OMBRO ATÉ A FOME

É o luto inerente dos homens do medo.
As almas somos templos devastados.
As velas grossas são velas com olhos derretidos,
as últimas mulheres enterraram seus filhos em guitarras
e levaram seus velórios ao mar.
Que não se pense nunca que a guerra acabou!
Tanto remendo no fogo debilita a vida.
O que se quer é sangue que anoiteça a carne,
que as crianças aprendam qual faca esconde
a imagem da criança assassinada.
Antes de que os sonhos reboquem a noite,
penderemos colares de alho nos portões,
começarão as festas patronais do povoado,
a solidão terá seus hospitais
e amolaremos os caninos do Anjo.
Temos todo o tempo das ondas de paz.
Nossos soldados viram seus relógios de areia
nos novos lugares da desolação.
É Quarta-feira cada vez que a invasão aborta seus cadáveres.
Habitualmente somos. Sei que somos.
Arquitetos perfeitos do passado.
O jantar sempre serve os crepúsculos.
Os uniformes sempre engomados.
Inevitavelmente mofam os fuzis.
E sempre haverá café com pão para os heróis.


LORCA

Não é certo, Federico
eu serei justamente meu homem prometido
quando charcos de sangue amanhecido
me integrem ao esquecimento e ao crepúsculo
acaso não terá sido tua ode mais heroica
haver morrido
apodrecido entre as balas eternas do ódio
tua carne foi mais doce pela guerra
teu macho delicado mais ombreado
tua tumba empoeirada mais poesia
do que todas as odes mais divinas.
Agora mesmo estou vestido de noiva
e enfrento as luas do guarda-roupa
minha terna solidão não é tua homenagem
o homem que queima a minha boca
encharca com lodo meus encaixes
e navega comigo nas sarjetas.
Não nos movem o céu nem o inferno
mas antes o cheiro suado deste mundo.
Parimos flores no nada
e em nós a ilusão nasce do veneno.
Agora que a tua vida é um museu
de páginas de pó e medo não cultivado.
Sou uma Bicha do Mundo
e assassino pombas para invadir o vento
que acredita ser muralha por onde eu passo.
Sei que por ser escravo sou senhor
e nós do destino somos nossos.
Que os ventos alísios precipitam
o facão fatal de meu leque.
Que bom que estás morto, Federico!
Que não serás o sinistro convidado
De nossa bacanal guerreiro.
Teu reino da espiga
sucumbe na colheita do bicho e da espada.


RIMBAUD E VERLAINE

Para poder entrar em nossos corpos
o túnel é distinto, a própria ruptura é outra
o meu, uma lagoa de infernos infinitos
o teu é uma armadilha para velhos delírios.

Há vínculos, elos de esperma
há vinho no cu do poeta
e o bicho quando entra é um círio funerário
um ódio mais morno que a mãe quando abraça.

De meu corpo ao teu, de teu corpo ao meu.
Os pássaros do amor seguem sendo os mesmos.
Pela velha estrada de violetas negras
nos veremos na última noite do século.

Que amado me amará ao descobrir
que ninguém pode realizar seu sonho?
Quem se atreve a disparar debaixo dos lençóis sujos?
Tudo indica que o sol fará da lua uma lenda.


LEZAMA LIMA

Os números se embaralham somente
nesta ilha de fumo de palha, cigana vesga
do aborrecimento; os pássaros se odeiam desde o centro
quando o sol queima as feridas; é absoluto
este véu de prepúcios e pétalas e pingos de pele de crocodilo,
estamos os irmãos reunidos e sigo estando ausente
no destino para sempre vestido de viúva de peixes.
Os ossos se organizam debaixo da terra
para empreender o voo dos fogos,
ninguém melhor do que um morto mamará de minha seiva e minha lenda
para poder retornar à ânfora;
nasci com a luz de minha mãe na cara
para dançar a dança de sua esfera,
minha noite é um sovaco cheiroso
para jamais esquecer a essência de seu espírito.
Molhei meus lábios com o leito do coco macio
e espero derreter sua tela virgem antes que aquele
banquete negro abra as portas do paraíso.
E se ao falar os figos apodrecem em meu pelo,
não é porque a alma foi cruel comigo.
Anjos lilases cruzaram o outeiro
podando velhas nuvens e presenteando rugas.
Os livros mais terríveis se tornaram pó inútil
e resta apenas um número, poeta, um círculos de braços calorosos
alimenta pisadas em teu túmulo para deixar no caroço tua fruta
de horizonte e fazer de ti um sacrifício de triângulos.


VIGÍLIA

Eu sou essa mulher que espera solitária
por qualquer convite ao pó que venha
pelo correio. Sou essa musa de turvos cafetões
com mesinhas redondas de tampa de fórmica.
O único jogo que conheço tem a estranha
luz do sêmen de segunda em um motel de espelhos
estragados. Eu me visto de preto para que ninguém
diga que a morte me pegou de surpresa.
E levo no olhar o ritual sem decoro
de toda bolerista caribenha: jamais envergonhada
dos talhos de moeda em cada veia, que umas
luvas de ópera e gaivotas camuflam.
Meu trago é um eterno aqui sempre estarei.
Minha pátria é um ziguezague sobre a névoa.
Devo ser Deus ou parecer ao menos que estou
petrificada neste templo, como uma jukebox
com aldravas, castrada pelos anjos do medo.
Não apenas sou… Eu me atrevo a ser
a doce mensageira de uma praga,
a poeta emplumada pela ira
e a pluma iracunda de outra história.
Eu sou a sem memória
e o destino tampouco me apressa.
Eu sempre estive aqui escondida,
sonhando minhas olheiras na letra.
Quando eu desaparecer lhes restará minha insônia
parodiando vigílias que não chegam.

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