Alfredo Silva Estrada (Venezuela, 1933-2009)

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Curadoria e tradução de Floriano Martins

A palavra do poeta recobra a força original que impulsionou o ato de nomear o primeiro objeto, a primeira sensação, o primeiro sentimento… Nas eclosões de seu devir – de sua aventura – a fulguração nominativa, inocente talvez em seus inícios, vai se tornando mais complexa, vai se nutrindo das obscuridades, do silêncio, das negociações e até, em ocasiões, tem que se armar de astúcia para sobreviver e afrontar ou marginar tudo aquilo que lhe é adverso.

Cotidianamente o poder primogênito da nominação reveladora corre o perigo de debilitar-se ou de ser confundido por e com a função da linguagem utilitária. Na contracorrente da própria cultura que, mesmo sem a isto se propor, trata de reprimir com suas rigidezes institucionalizadas o impulso originário que nos faz viver em e pela poesia, corresponde a cada poeta, inquieto morador dessa parcela de “desconhecido despertando em seu tempo dentro da alma universal” (Rimbaud), resgatar e defender contra hostilidades e surdezes a vitalidade subterrânea, irrefreavelmente ressurgente e amiúde estalante, dessa palavra que constitui sua autêntica maneira e mais alto grau de existir.

Poetizar, pois, nunca afastado do vivido, mas que nunca se conforma com instalar-se passivamente nessa cópia. A partir de e ainda mais além de todas as vivências, a poesia exige – o poeta exige de si mesmo – uma supervivência: o lugar surpreendente do poema com estrutura própria que resista, até mesmo em suas vacilações e quebras, a todas as leituras possíveis.

Um poema sem germe, sem tutano de vida, não é poema. Porém a vivência em si, por mais profunda e firmada que seja, não basta para criar um poema. Desde o vivido do plano existencial, entre suas plenitudes fugazes e suas frequentes derrotas, através do misterioso processo da escritura-auto-leitura, bracejo entre censuras e anuências ou descansado fluir depois de uma tácita, dilatada espera sem tempo cronológico, o poeta engendra a supervivência da estrutura poemática: uma vivência nova, carregada, para ser vivida por outros; uma feitura, fundamentada sobre o tempo existencial, porém medularmente construída por essa conjunção insólita de tempo e espaço que nos faz habitar durante instantes privilegiados uma presença infinitamente aberta, abrindo-se para sua própria comunicação inesgotável.

ALFREDO SILVA ESTRADA
Trecho final do prólogo de La palabra transmutada. La poesía como existencia. Caracas. 1989.


VAI LIVRE DE MIM MESMO E DE SI MESMO

Tonnerre et rubis aux moyeux
Mallarmé

Garlic and sapphires in the mud
Clot the badded axle-tree
T. S. Eliot

1

Vai livre de mim mesmo e de si mesmo
E me ilumina e canta

Diário sobreviver nossa diversão
Sobre o tropel da cidade afogada em sua imundície

2

Ar livre entre andrajos do tempo
Nos descobre a inocência de um rosto
E abriga até o instante esquartejado de estampidos

3

Junto aos sumidouros do nada
As fraturas de ausência os talhos do esquecimento
Afirma-se a pisada desnuda
E a marca contínua do ser em sua renovação

4

Respiração da escritura
Brechas na insônia desde ruínas de sonhos
Até futuros horizontes na memória movediça

5

Erguida a constância do sangue
Sustenta-se feliz a flor de horário

Horas feitas de húmus
De estrelas que afundam com a roda entalada
E retornam com o eixo o diamante e o alho

6

Forno em plena intempérie
O fogo e sua latência

Vertente de um silêncio que ascende constelado

Lactescência de vozes com sede de amanhecer

Amacia o canto de origem
A luz a descampado e em guaridas

7

Corpo
Transpiração da página

O ser em seu início sem nome sem imagem

E a meditação
Apenas uma auréola sobre as searas

As têmporas nos cumes

As vozes subterrâneas


PARA SALAH STÉTIÉ
(Poema reflexivo)

Para suas imagens mediadoras

Olhemos
Toquemos as curvas de tua lâmpada
Acende-se no apagado e no sem nome
Relampagueando nas cinzas

Lâmpada elementar feitura incandescente

A beleza do fruto a impureza do fruto
Adentra-se na lâmpada cozida

Ideia-menina                       menina
Menina estendida sobre leito de ervas
e tu                                                                           menino
Menino idealista na grenha de centelha
Estendida com os seres sobre uma única pedra
Nessa vertigem do Ser desgrenhado de centelhas

Seres repousando seus rostos seus sexos
Sobre pedras consertadas
Pedras que bordam a pompa das relvas relvosas

E minha xícara xícara
Minha pouca xícara de barro

De pouco barro
Seio de imagens esfumaçando-se em ser
Imagens-ser até que sejam tuas minhas nossas
Através dos veios dos idiomas e preces
Na fulguração desconhecida

Sem uma prece
Cinza de tua lâmpada
Musgos talhos raizinhas

e nossa ponte arqueada                      corpo de fumaceira


O GRITO DAS IMAGENS

O grito das imagens destruídas
no deslizamento
De qual reflexo?

Não vemos aquela poeirada ao fundo
qual fundo?

Doem os olhos de não vê-la
quais olhos?

O corpo amado se nega a ser imagem
se entrega
muito além da esteira de todas as imagens
qual esteira?

A mão que não retém a imagem escrita
rejeita a evocação sobre a página

qual mão?
qual página?

O passo que se detém
para avançar rompendo o eco das imagens
afunda a dura imagem em sua pegada
qual passo?
qual eco?

Os lábios que pronunciam
o mais desejado nome em um instante
ficam com sede de imagens
quais lábios?
qual nome?

O óxido das imagens salva o rosto
O grito se dilui entre os matizes do dia

Retornam as horas com relevos

Sobre a pele imantada ondulam as jovens imagens

Roçar dos corpos no vazio deixado pela imagem

Lufada
Remanescência

Vibra o avesso da página em vigília

Toma de nós a presença carnal sob o abismo da imagem

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