Belén Ojeda (Venezuela, 1961)

| | ,


Curadoria de Floriano Martins
Tradução de Gladys Mendía

Belén Ojeda (Caracas, Venezuela, 1961). Música, Tradutora e Poeta. Formada com honras pelo Conservatório Tchaikovski de Moscou. Publicou os poemários: Días de solsticio (PEN CLUB, 1995); En el ojo de la cabra (Editorial Diosa Blanca); Territorios (La Liebre Libre Editores, 2000); Graffiti y otros textos (Monte Ávila Editores Latinoamericana, 2002), Obra completa (1995-2020) (LP5 Editora, 2020) e Somos cuatro (LP5 Editora, 2022), onde traduz diretamente do russo para escritores da Era de Prata: Anna Akhmátova, Marina Tsvietáieva, Ósip Mandelshtam e Boris Pasternak.

*****

Com sua prosa poética cativante, Belén nos mergulha em temas profundos e abstratos que exploram a essência mesma da experiência humana. A dualidade da vida e da morte, a constante transformação e a natureza da realidade são os pilares ao redor dos quais seus versos giram. Através de contrastes e paradoxos engenhosamente tecidos, a autora consegue destacar a complexidade da existência e a inextricável interconexão dos opostos. Nestas páginas, a identidade se entrelaça com a memória e as experiências acumuladas, criando uma sinfonia poética que toca as fibras mais íntimas do leitor.

As metáforas e símbolos utilizados por Belén Ojeda em seus poemas expressam conceitos abstratos e significados profundos, oferecendo ao leitor uma experiência enriquecedora e cheia de nuances. Sua brevidade e concisão contribuem para uma atmosfera reflexiva e contemplativa, convidando a mente a se aprofundar em uma introspecção profunda.

Gladys Mendía


I

Fundamos nossa realidade sobre o sopro.
Os números da existência formam um círculo sagrado que percorremos lentamente.
Movimento em baixo e contínuo.

II

Quando a dureza busca alento, surge a rachadura.
Vida e morte moldam o vazio para permanecer na memória.

III

Os barqueiros mostram o que o fundo esconde.
A direção da correnteza não é suficiente para manter o rumo.
É preciso se deixar levar pelo contínuo de ambos os lados do incerto.

IV

Uma janela nos une ao exterior. Uma ferida nos une ao interior.
Enquanto a janela clama pelo infinito, a ferida implora pelo finito.
O oco abriga o vazio que o define. Não vincula nem protege.

V

O invisível nos envolve, nos esculpe, nos define.
Entalha gestos e expressões, sulca a pele, revela assimetrias, afunda os lados.
Nos mina até nos transformar.

VI

Toda doença é uma Metamorfose.

VII

Trazemos em nossa bagagem grandes caracóis onde guardamos a memória do mar.
Alguns viram apenas um olho em nossos rostos. Não carregamos lanças nem flechas.
Apenas ânforas cheias e vazias.
Permanecemos eretas, em silêncio, cumprindo antigos desígnios.

VIII

Guardamos no sal a tradição do obscuro. Ninguém revelará o mistério do diverso e caótico.
Sabemos que acampar é suficiente para permanecer, mas ninguém nos escuta,
porque escutar é parte da tradição perdida.

IX

Presenciamos a batalha fora de seu âmbito.
O arsenal inimigo nos explodia por dentro sem destruir nossos corpos.
Vimos abrigando as imagens do deterioro e por muito tempo caminhamos, sem
reconhecê-lo, como cães solitários, lambendo nossas feridas, buscando o caminho de volta.

X

As imagens nos penetraram como balas. Não pudemos escapar para nenhum lugar.
Ficamos invadidos sem cerco, feridos com a pele intacta, deformados sem cicatrizes,
enquanto o corpo, à deriva, buscava transcender seu olhar prolongado de abandono.

XI

Os toupeiras dedicam suas vidas a cavar.
Dizem que os machos buscam a liberdade no escuro. Cavam e cavam penetrando a terra.
Algumas vezes, o macio desmorona e eles acreditam encontrar a superfície libertadora.
As fêmeas conhecem o inútil desta tarefa.
Dedicam-se à criação e ao trabalho de tapar as perfurações labirínticas de seus filhos.

XII

Os dromedários têm a memória em sua corcova.
Dizem que acumulam gordura para resistir às travessias, mas aqueles que migram com
esses animais sabem que eles carregam ali as dores da espécie.
Alguns viajantes deixaram testemunho de que no começo só existiam dromedários,
até que as fêmeas ampliaram suas lembranças e os dromedários começaram a chamá-las
de camelos.

XIII

As nomenclaturas, os estilos, classificações e afins, são parte do território onde ainda
arrastas tua milenar cauda de réptil.

XIV

Há algo de cirurgia estética no uso dos sinais de pontuação: suspende-se o que incomoda,
atrapalha ou desgosta…

XV

A República privilegia o monárquico: reinam sucessores e herdeiros.

XVI

Democracia: liberdade de instaurar pequenas ditaduras.

XVII

Orquestra: organização tribal criada pelos europeus, em tempos relativamente
recentes, para executar música.

XVIII

A cantora oficial é única
Na próxima temporada cantará
inclusive
os papéis masculinos
É a única cantora oficial.

XIX

Os magistrados carregam a consciência na peruca.
Na vida real são calvos.

XX

O descontínuo nos conduz ao caos permanente, à fundação constante.

XXI

Alguns poetas viajam para constatar realidades alheias.
Eu viajo para acrescentar losangos ao meu traje.

Deixe um comentário

error

Gostando da leitura? :) Compartilhe!