5 Poemas de Ana Mendoza (Venezuela, 1974)

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Curadoria e tradução de Floriano Martins

A verdade de uma obra está em seu corpo. Eis uma máxima fabulosa que nos envolve a todos. Em grande parte porque acreditamos que um corpo é só corpo. Um corpo, quando belo, não necessita alma. Mas há também os que defendem que a forma é a única porta de acesso ao mundo ulterior onde ela se liberta e define. Na criação artística não há aporte menos relevante do que aquele que busca uma verdade. Todos os mundos estão compostos por um sentido ambíguo, quando menos, que não permite a verdade se impor como uma deusa inquestionável. No mundo da criação nem mesmo a dúvida é um trono garantido. A verdade não se basta a si mesma. Fui surpreendido pelo encontro com a venezuelana Ana Mendoza (1974), e sua consciência dessa multiplicidade de almas que definem um corpo. Quando nos encontramos brincávamos com as formas, com um entrelaçamento metamórfico de muitos de nós, de muitas de nossas projeções. Quando ela me falou de seu carinho pela fotógrafa Francesca Woodman vi que ali estava mais do que uma atenção, pois ambas cuidam de forjar a existência a partir de um vislumbre. Francesca morreu muito jovem e a Ana nós desejamos uma vida longa. É muito importante o que ela vem realizando no interior de um país perdido de si pela alma rural que nunca soube dar o passo seguinte. Resta a dúvida: faltará alma ou corpo à Venezuela? Em meu diálogo com Ana Mendoza observamos que também em terras venezuelanas a arte compreende melhor a realidade do que a política.

FLORIANO MARTINS


DO ESPAÇO DO ESPELHO

Meu nariz no meio do rosto, meus olhos de cílios queimados pelos risos despertam outra vez à mesma hora da sede, da luz, do esquecimento, dos dias que não transcendem. Uma pequena pedra branca envolta em minha mão desliza entre meus dedos sendo a capital da lua e outros planetas que gira pela órbita de todos seus olhos abertos e fechados. Teu riso que vem com o eco se repete por todo o espaço saltando nas paredes.
A memória, valha-me Deus, quer me engomar a roupa com os ganchos sobre o roupeiro, e uma pequena estrela dessas pintadas na parece muda de um lugar para outro e se esconde quando as conto, brincando com teu riso e minha paciência seca de carícias. Aos meus oitenta anos caminho, penso e tenho as lembranças intactas, meus pincéis são vítimas de velhas manias de meus primeiros anos de infância quando abro a mão escondo a pedra e a pequena árvore do jardim não é pequena, os cães seguem dormindo atrás das portas.


DAS PRAIAS SURDAS

A beleza convulsiva terá de ser erótico-velada,
explodente-fixa, mágico-circunstancial,
ou não será beleza
.

André Breton

…no lugar onde as horas marcam
com agulhas sobre a pele
Acupuntura o tempo surdo de olhos
docilmente por instinto sopra ao ouvido
tambor de água vaivém de seus latejos
respira de todos os meus eus como uma lenda
que ressoa sobre pedras de proa

Às vezes me sinto triste
e outras vezes também.

Como um riso fragmentado
sou toda a tristeza morta vivendo em mim
uma e mil formas mais
dobram a ternura do espelho
quase obscuro em redondeza
reconhece meu corpo de órbitas e círculos
rochas e quedas que seduzem vulcões
áridos de tanta luz
eu me torno fogo e magma contra a morte
mulher de todos os dias minhas mãos se alargam
para lhe alcançar na distância da manhã
me apego e resisto
as árvores de ramos conscientes
me sujeitam com aroma do sexo perfurando
descendente, sobrevoo a imensidão
canto de boca por onde fecham seus lábios.

No ar sem nenhum final
calada como se flutuasse
não há ilhas, não há vida, não há terra
apenas espaço das esperanças
viciado de clara luz
de estrelas.


UMA MULHER E UM HOMAM 100 ANOS ANTES DE SER

Uma mulher e um homem nasceram de um imaculado luminoso branco
uma mulher e um homem contemplando seus rostos sem memória
cobiçam suas almas de um leve fulgor de sorrisos e trevas
uma mulher nua de pé e alada pousa nas cavernas
do sonho do amante desperto
um homem que dorme abre os olhos e vê todos os astros
nos olhos desertos daquela mulher que dorme com ele
escuta o eco fatigado de sua respiração pulsando
suas mãos se alcançam à distância dos quilômetros
uma mulher e um homem se beijam torpes pausados desesperados
correm sobre a paixão dos lábios e os poros preenchidos de fogo
as chamas e as velas com uma intensidade de centenas de cavalos selvagens
uma mulher de seda e asas desliza no ar e voa
um homem mais belo que a noite do milagre nasce
e se ilumina uma e outra vez perpetuando o sonho, penetrando o sangue
uma mulher e um homem que rebentam e ardem caminham de mãos dadas
sobre os corpos calcinando tudo a seu passo sem tempo
…Fecha os olhos e respira seu cheiro de madeira e flor.


O GRANDE GOLPE

Devia dizer te amo.
Porém o outono acenava,
cravando-me suas portas na alma.

Juan Gelman

Cada golpe de amor é um amante livre
que gira pela noite escura cobrindo-me de céu
nasce e morre o mundo e eu vendo teus olhos que se deitam
sobre meu peito de constelações tardias
cravadas no espaço da recordação.

Cada amor é um amante que libera
a roda escura pelo centro da alma
nasce e morre o mundo e eu desterrada em uma velha caixa de papelão
como a umidade da chuva e mofo distante
que já bem gasto vive no recanto do lixo

Cada amor, que é lembrança
vive pelas ruas da clara luz e das sombras
nasce e morre o mundo um dia qualquer conspira a culpa
revela aparentemente uma queixa rançosa
que não gasta o amor tanto quanto pagar uma penitência.


A HISTÓRIA DE UMA LEVE MORTE

Em um confuso buraco
dentro de uma parede que vibra
vive uma morte triste.
Sua exasperada pergunta
é uma travessia agonizante
ela é apenas uma morte qualquer.
Cansa de ser vertente de olhos
úmida lambe as botas das bailarinas
de um café secreto sob suas camas.
Quer a todo custo viver
vive às escondidas com medo
tem por proibição
jamais aproximar-se da margem.
O suicídio não é uma porta
floresce no amanhecer muda
com um silêncio e um riso de penumbra
vai fazendo um sulco pelo caminho
iludindo o abismo
aproxima-se por uma das janelas
de memória mais recôndita
que sempre assedia os homens
para que creiam na palavra paz.

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