7 Poemas de Juan Calzadilla (Venezuela, 1931)

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Curadoria e tradução de Floriano Martins

A obra de Juan Calzadilla vagueia por uma poética que habita uma cidade escura. Uma cidade nunca ausente. O poeta diz a cidade e quando a conta a comunica a si mesmo, sentindo-a, animando-a, sofrendo-a, levando-a como uma marca na pele, talvez porque esteja na pele de cada rua que percorre para lhe comunicar a realidade. Sua palavra sempre atenta, está lá como na sombra. É o íntimo que foi exilado do poema. Sua forma física passa a noite na página, parecendo abissal na metáfora que o poeta guarda. É a ilusão desse imensurável paradoxo que nos permite mergulhar em algumas reflexões essenciais para ver o lugar da palavra e o lugar do corpóreo no poema na obra desse poeta venezuelano. Corpo feito de manchas e sombras. Juan Calzadilla transita entre esse dizer e esse silêncio do poema. Quando silencia, silencia o que sofre. É a agonia de viver que silencia tudo o que ele carrega como um fardo nas costas na vida. Há obras na poesia venezuelana que negaram espaço ao íntimo. A intimidade não é apenas a da alma, é também a do corpo e seus altos e baixos no mundo cotidiano. A natureza secreta da pele na palavra simples não aparece com esplendor em outras obras. Juan Calzadilla foi capaz de nos apresentar a página de sua escrita, de nos contar a vida cotidiana de forma simples e transparente.

JOSÉ GREGORIO VÁSQUEZ


GOLPEANDO O ABISMO

Entre meu espírito e eu se interpõem minhas roupas
levantam-se meus atos os muros de espessura de lucíola
que admito desconhecer como ao tecido dos cromossomos
os abismos brandos que se encrostam em meu corpo
feito de uma matéria de lava cosmogônica e nervo
de convulsão doméstica
de tumor amistoso com forma de cratera medicinal
uma substância feita de corpúsculos de existência diária
providos de tempo necessário para cada pulsação
e cada um dos quais é ao mesmo tempo um átomo
um anjo uma obra de arte uma explosão
um deus de espessa crina solar
diariamente adquiro consciência desse desequilíbrio
de arco perigosamente estendido
a que me condena um pensamento a ponto de disparar.


CIDADE DESERTA

Ao chegar, o viajante busca alojamento no mais antigo
hotel, sem sequer suspeitar que a cidade foi abandonada
há muito tempo. E é que essa impressão de ruína
e solidão que descobre por todas as partes resulta apenas
comparável com sua tristeza de visitante. Observando as ruas,
qualquer um diria que as casas continuam ocupadas, as lojas
abertas, a vida a ponto de começar depois de uma noite
de tormenta. Mas não. A cidade está deserta há muito
tempo. Um fungo úmido e violáceo brota na madeira das
portas por cujos orifícios as lagartixas se esforçam em
penetrar os salões principais. O mato ocupa o lugar
das camas: linguagem de pólipos ressecada e tíbia sob a viga
carcomida de onde os tetos descem traçando círculos
cegos. A certas horas, o mar se introduz nos pátios
das mansões, deposita maciços de coral e conchas de
moluscos ao pé dos frisos e, logo como respeitoso da
linhagem violada, com um suave bamboleio, se retira dos
aposentos senhoriais onde tem acumulado os restos de
uma matéria viscosa e branca como petróleo. No limite, além
das últimas casas, desperta o deserto. Sopra um vento
pungente sobre a praça pública em cuja redoma, quase coberta
por um montículo de areia que imita um pedestal, emerge
a cabeça do prócere. É, desde já, uma maneira de morrer
lentamente sob esse golpe de enxada com que a brisa grave
vai descobrindo as tumbas onde, cotovelo a cotovelo, descansam
os habitantes.


TRÂNSITO

A bolsa ou a vida
Isso é o que não se cansam de nos pedir
como se a alternativa fosse iniludível
e o transe de decidir mais importante que o resultado da ação.
O que não está bem é a forma de propô-lo
e que justamente a solicitação impugne com urgência de revólver uma ou outra coisa
sabendo que ambas nos foram confiadas em empréstimo
como quem diz por uma temporada
e que igual daria pedir tudo por último.
Que usem navalha, arma de fogo ou que nos passem simplesmente a conta
não modifica de forma alguma o marco da situação
nem diz nada contra as regras do jogo.
O que nos desgosta é o cortante da fórmula
ou talvez o fato de que para responder
não possamos dispor nem da vida nem da bolsa.


MÁS NOTÍCIAS

De todas as partes as notícias são más
Acontece que chegam aos montes
entre lufadas e penetram com o vento
pelas portas os corpos os rádios as janelas
somando nossas vidas
ao caos de uma grande inundação.
Nunca sabemos onde alojar tantas más notícias.
Jamais disporemos do número exato de galpões.
Certamente, não há maneira de convencê-las
de que fariam melhor papel vivendo em um mundo à parte
no qual sempre se poderá aceitar
que o mal está condenado a ter razão.
Mas é que ao longo se tornaram
tão familiares
que se negam a sair de nossas casas
e desejariam apenas valer-se de nós
como de seus verdadeiros corpos.
O mal é que ocupam demasiado espaço
e ao crescerem como rizomas
ameaçam arrebatar-nos o nosso.
Na mente não cabem.
No coração tampouco.


DO ESQUECIMENTO

Assim como há um afã de novidade, há um afã de esquecimento. A isto se deve atribuir que encontremos novidade no que, havendo-o esquecido, achamos como novo de repente pela segunda vez.

Se não houvesse esquecimento, não teríamos que nos dar ao trabalho de inventá-lo: ele mesmo se ocuparia de fazê-lo.

O esquecimento é aquela porção de morte
que proporciona o não saber-se.
Ali está resgatando-se apenas para si mesmo
desde o fundo de nossa própria ruína.
E que fazes tu para contradizê-lo?

O esquecimento vive em nós, nos exprime.
Somos a seiva
pela qual ele nos retribui,
sem pagamento por havê-lo alimentado,
o nada.


SANTIDADE

Há certo misticismo em admitir
que o poeta deve ocupar-se
da realidade.
E mesmo que não o faça
porque falhe aqui seu sentido prático,
já há bastante santidade
no fato de que
nestes tempos obscuros
possa ocupar-se de algo
que, como escrever, a ninguém faça feliz.


CICLO

A humanidade decresce com o indivíduo.
Reduz-se paulatinamente,
Caricatura-se neste.
Porque o indivíduo a representa,
É sua encarnação vivente.
A lenta degradação infantil da mente
Privilegiada do artista é sua metáfora.
O poder do mundo diminui
Com cada homem que envelhece.
Com este envelhece tudo.

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