3 Poemas de Juan Liscano (Venezuela, 1915-2001)

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Curadoria e tradução de Floriano Martins

Há poetas mais exigentes que outros, com linguagem mais trabalhada e despojada. Há poetas de abstrações essenciais difíceis de expressar e que requerem uma elaboração linguística específica. Há poetas de efusão, de celebração. Tens razão quando diz que o poeta é toda a literatura: pensa, escreve, escreve, pensa; corrige e apaga, volta a escrever etc. Às vezes suas correções são um equívoco, às vezes o escrito merecia ser reescrito. O que me parece é que a poesia não pode ser concebida como um ato puramente semiótico, puramente textual, porque então perde vibração e contágio. Seria uma lápide. Quanto à crítica, não há dúvida de que hoje em dia é muito grande a desfunção da crítica poética, seja porque a disseca o academicismo dos scholars, seja porque a distorce a subjetividade laudatória.

JUAN LISCANO, Fragmentos de La poesía de Juan Liscano: matéria prima de la gran obra, entrevista concedida a Miguel Angel Zapata. Revista INTI # 26-27. Rhode Island. 1988.


No decurso de minha trajetória poética apontaria a época que corresponde a Edad oscura e Los nuevos días como um momento de mudança. Dois fatores determinam essa mudança; primeiro: a leitura de Krishnamurti, ela me criou o problema da vaidade da literatura, de que a palavra não é a coisa e que havia que ir à coisa, e assim esta concepção me obrigou a pôr em questionamento a literatura, a revisá-la. Neste processo cheguei ao silêncio, à origem, à existência das coisas, porém vivo esta experiência desde minha condição de escritor e não desde a do místico, de modo que não posso contentar-me simplesmente com a contemplação uma vez que a minha matéria é a palavra. Depois de haver intuído o poder das coisas retorno à palavra e escrevo Los nuevos días, tentando pôr a palavra a serviço da coisa e busco, como diria Barthes, uma escritura mais branca, menos encoberta. Depois, o outro fator, vem dado por minhas viagens à Argentina. Muito me impressiona a poesia de alguns argentinos, seu despojamento. [Jorge Luis] Borges, [Alberto] Girri, [Enrique] Banchs, são um exemplo contrário da sensualidade tropical, do transbordamento e de todo esse conto do barroco. Essas duas influências provocaram o nascimento de uma escritura não barroca, branca, mais baseada na transparência do que na máscara.

[…]
Essa capacidade minha para abordar distintos temas é o que tem o dom de irritar àqueles que dizem que abuso de minha presença na imprensa e quase dão a entender que sou um exibicionista frenético. Partindo de setores que estiveram, e estão, muito vinculados a mim, não deixa de ser dolorosa esta apreciação. Agora, a capacidade de que falo forma parte de minha concepção do que é o intelectual em uma sociedade. Tenho uma formação francesa e por isto trato de ser uma espécie de testemunho de meu tempo e, ao mesmo tempo, esse testemunho não me basta porque necessito ir mais além. Isto pode ser um defeito, porém sou assim, tenho esta formação e, além do mais, não tenho um sentido purista do poeta, não creio na poesia como fuga, mas sim como meio. Para muitos poetas a poesia é um santuário, um refúgio para escapar da hostilidade do mundo; em troca, desde muito jovem, sempre estive pelejando.

JUAN LISCANO, Fragmentos de Conversación con Juan Liscano, entrevista concedida a Rafael Arráiz Lucca para o livro Grabados. Academia Nacional de la Historia. Caracas. 1989.


METAMORFOSE

Teu bloco de gelo flutuante
teu iceberg teu castelo de orvalho
teus lábios de cascata gelada
tua solidão polar
na noite gélida do mês de janeiro.

Teus lábios como duas lâminas frias
tua língua e tua saliva
como lenta geleira que resvala
teu púbis como um pequeno bosque de pinheiros
sobre a estepe nevada.

Para vencer a noite e a geada
para afugentar a solidão como um lobo faminto
estabelecemos ritos de sangue
de fogo
de marcha lunar.

Tu cantas. Eu canto.
As línguas de nosso canto nadam no vento
como dois peixes de fósforo.
Tu cantas desde o fundo de ti.
Eu canto desde o fundo de mim.
Em nossos rostos surgem desconhecidos rostos.

Tu cantas desde o fundo desse novo rosto aparecido
e tua carne se irisa floresce em cristalaria de neve.
Uma lua marinha lhe acende uma lua interior
e é como resplandecente gruta de gelo.
Eu canto desde o fundo de mim e nasço outro.
Brota uma voz desconhecida
um verbo uma língua de mim que eu não sabia
brota um homem de desejos como uma labareda:
delfim que salta
osso que se regue
flecha que acerta o alvo.

Eu canto. Tu cantas.
Deixamos de ser os mesmos.
Os gelos retrocedem. Se fundem as geleiras.
A noite se enche de murmúrios de águas.
Nossas vozes nadam no vento
como dois peixes de fósforo
voam pelo ar azul de lua
como duas aves de estrelas.

Tu cantas desde o fundo dos seres que te povoam.
Te enche o coro de suas vozes.
És a terra a água o fogo
és um pássaro fêmea e um tíbio ninho.
Eu canto desde o fundo de meus verbos:
sou a chuva o álveo a cinza a fumaça
sou o vento e minhas línguas lambem tuas plumas.
És o eco do vento
quando soa seu rumor de fundo do mar entre os pinheiros
e eu sou o pinheiral.

Eu canto. Tu cantas.
Tu voa soa minha. Soa tua minha voz.
Agora és a chuva a neve o granizo de mil pisadas
e então sou a terra a água: o que tu eras.
Te vês em mim como uma paisagem
és o leito de meu rio
fluo
te molho toda
sou a água de eriçadas cristas de galo
a água que canta como um galo e sacode suas plumas
sou o galo de fogo que te seca e te acende
e te converte em cinza em fumaça e em distâncias.

Tu cantas. Eu canto.
Sou o eco de tua voz. És a sombra de minha voz.
Nossas aldeias se juntam em paz.
Retrocede o inverno. Retrocede o outono.
Amanhece a noite
o gelo corre rio da aurora
o polo resplandece como trópico
fulgura o eterno verão o equinócio justo
a Idade de Ouro

e tu e eu somos clarividência
duplo pássaro do sol.


JARDIM DO VAZIO

não tenhas nada querido
em nenhum lugar deste mundo

UDANA
(Sutra oitavo da oitava vagga)

O pensamento do perdido
o sofrimento de pensá-lo
a ansiedade de negar o cumprido
não cessam
porém o rugido se afoga
e por momentos a pena se esconde
e deixa uma marca limpa em seu lugar.
Vislumbra-se
algo semelhante à claridade sem tempo
depois a luz parece iniciar seu brilho
sobre o medo dos primeiros
dos últimos dias
sobre o apego ávido
sobre a rejeição da morte
começam a ser distinguidos imaginários signos
belos animais que vivem sem pressa
longe das caçadas mortíferas
dos currais e das jaulas
no silencioso jardim do vazio.


AQUÁRIO

No escuro espelho de Aquário
se amontoam e deslizam as bestas
dos rios subterrâneos
dos sombrios cursos fluviais
que correm entre paragens escarpadas
das nádegas de pesado fundo intestinal
grandes águas tenebrosas
que um anjo metade peixe
rapidamente roça
com suas asinhas ou com suas asas
hálito de boca celeste
céu claro-escuro
onde as estrelas deixam cair
o reflexo de sua distância apaziguadora.

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