Curadoria e tradução de Floriano Martins
A poesia é o ápice de toda criação artística; é a origem e o destino de toda expressão estética. É por isso que é muito difícil definir O que é poesia; por isso, poderia aventurar-me a dizer que a poesia é uma forma de ver e sentir a realidade.
A poesia nem sempre é um verso ou uma estrofe; a poesia está em tudo que nos rodeia. A poesia pode ser um beija-flor que vem chupar uma flor na minha varanda ou na carícia dos longos dedos da madrugada – para citar Homero. Ou você pode se vestir de acordo com os acordes de um piano ou com o sorriso de um recém-nascido.
A poesia é enigmática, intangível; e quando pensamos que a apreendemos, encontramos sua ausência; E, claro, o abandono dói. A sua fuga pode deixar no ar a essência de um perfume ou o cheiro de uma fruta ou o rasto de luz filtrado pela bruma que esconde as montanhas.
A criação poética é um enigma; e como todo enigma pede, exige, espera para ser decodificado; portanto, nem sempre podemos alcançá-lo.
A criação poética é um caminho que permite ao criador compreender a história e, portanto, o tempo que teve de viver.
No que me diz respeito, a obra poética me permite mergulhar nas profundezas da condição humana; e acima de tudo abre caminhos para que eu tente elucidar algumas respostas aos grandes cataclismos que se avolumam sobre nossa espécie.
A poesia até me permite entender a guerra em geral e a guerra colombiana em particular. Na sinopse de minha última coleção de poemas, Todo lo demás lo barrió el viento (2020), escrevi o seguinte:
Por que contar a guerra? Por que mergulhar em sua miséria? Por que essa descida até o último dos círculos do inferno? Porque assim entendo a realidade do meu país. Porque assim penetro mais na condição humana. Porque assim também escapei da dor e da ignomínia. Escrever é um láudano que me ajuda a compreender a complexidade da guerra colombiana. Agora sei, como sempre soube, que morrerei em um país que anseia pela paz e que faz todo o possível para que ela nunca chegue. Por vários meses, os assassinatos de líderes sociais e ambientais reinseridos não pararam. Alguns dos poemas de Todo lo demás lo barrió el viento são direcionados a eles. É a minha forma íntima e humilde de prestar homenagem a algumas pessoas que tiveram a coragem, a valentia, o destemor de levantar a voz; sabendo de antemão que suas vidas, as de suas famílias e comunidades estão em perigo. A todos a minha admiração, respeito e solidariedade. Sairemos vitoriosos desta hecatombe? Acho que não, pelo menos não terei tempo de conhecer a paz na Colômbia. O que sei é que a poesia me permitiu mergulhar no horror e, ao mesmo tempo, me preservou de sucumbir ao delírio.
BERTA LUCÍA ESTRADA ESTRADA
“Variaciones sobre la creación poética”. Escrito para a presente edição. Setembro de 2020.
VIRGINIA, A SACERDOTISA
Virginia Silva era uma mulher indígena,
líder de seu conselho e
médica tradicional da comunidade Nasa,
ao norte de Cauca.
No poço profundo da memória
uma menina observa a sacerdotisa da dança dar três passos.
A sacerdotisa ergue os braços em uma oferenda nascida da noite do tempo,
– tempos perdidos, tempos esquecidos com a chegada de outros deuses de outros cultos de tempos desconhecidos –
A sacerdotisa se afasta na evocação de um antigo amante
– não reconhece o corpo que dança colado a ela –
estrangeiro!, – pensa –.
Ela não sabe que a exilada é ela mesma;
sua pele transpira desenraizamento,
a melancolia desliza por seu rosto,
nubla seu olhar.
Ela esqueceu os passos de uma dança milenar,
a sacerdotisa se funde no ar
e nem mesmo a melodia de uma quena
pode trazê-la de volta.
AS ESCADAS EURÍDICE
A Lilia Patricia García, assassinada em 13 de outubro de 2019. Secretária do conselho da reserva indígena Awá de Watsalpí, localizada no município de Barbacoas (Nariño).
O sussurro das folhas caindo
abafou o eco das montanhas.
O silêncio dos pássaros
Penetrou as fendas da casa de fumo.
Ninguém viu a sombra que fugiu da floresta,
apenas o ruído seco de um corpo que cai
foi sentido.
DIÁRIO DO TÉDIO II
Para uma das muitas prostitutas sem rosto
mortas no meio da guerra
Viajante do tempo
esculpe seu passado na pedra do Rei Arthur
O verbo, espada afiada,
Os gestos, cota de malha,
seus olhos, escudo antigo
No palacete dos amantes
ela se move de corpo em corpo
em busca de prazer
Mas só recebe carícias falsas e desajeitadas,
a rota equivocada acabou com a sua luxúria
o desejo, despedaçado,
a deixou vazia
NOVAMENTE OFELIA
Às dezenas de mulheres jogadas no rio Cauca.
Os perfis das carpideiras,
como se fossem fantoches em um teatro de sombras,
são desenhados ao crepúsculo.
Elas são as guardiãs do rio.
Em um ritual secreto e antigo,
elas repetem litanias.
Esperam pela mulher que desliza na água
envolta em uma mortalha de linho.
Elas intuem que é outra Ofélia,
Uma mais que embalam as ondas.
FRIO
Para as mulheres que foram despojos de guerra.
O homem, um desconhecido,
penetra sua densa floresta
rompe o fundo do olho
estalactites
crescem
como veneno na garganta
afogam
o uivo
de loba ferida
Ele sabe que naufragou em um pôr do sol sem aurora
A ENCRUZILHADA DO TÉDIO
Para uma das muitas garotas impúberes
estupradas e assassinadas em sua casa.
Vestida de branco
sentada no chão
passageira do tempo esquecido
perambula na encruzilhada do tédio
perdida em um futuro sem trilhas, sem geografia,
carente de perguntas e respostas
Ninguém deu a ela um espelho para dialogar
nem mesmo conheceu seu rosto
ou seu sorriso etéreo
nem teve tempo para viajar por seus cabelos
ou usar um par de brincos baratos
comprados em uma feira do povoado
Gracias Floriano Martins por esta hermosa traducción de algunos de mis poemas sobre la guerra en Colombia: Todo lo demás lo barrió el viento, ARC Ediçoes- Colección “O amor pelas palavras” y Editorial Cintra ( 2020). Gracias también a la revista Acróbata por acogerme en sus páginas.