Curadoria e tradução de Floriano Martins
A poesia de Daisy Zamora abala o leitor pela empatia com que mostra a verdade nua e crua desde as profundezas do ser e pela compaixão pela condição humana. Ela não poderia ser todas as pessoas que falam por meio de sua poesia, mas na beleza delicada e, às vezes efêmera, de suas imagens e sua música há também um realismo e um humor gritantes que marcam sua arte de tal forma que convence o leitor de que isso só poderia vir da fonte, só o coração de alguém que passou por isso, que estava lá, que sobreviveu, pode dizer. Parafraseando W. B. Yeats, sua voz é tão genuína que não podemos separar o dançarino da dança, e em toda a sua obra as fronteiras entre a realidade e a observação aguda são borradas repetidamente, seja na poesia de guerra ou na poesia de amor, em monólogos de primeira pessoa ou vinhetas impressionistas, em confissões ou revelações, em toda a vasta gama de sua obra poética apaixonada e compassiva.
Daisy Zamora (Manágua, 1950) fez parte da resistência clandestina, foi combatente e acabou se tornando a voz da Rádio Sandino durante o exílio político. Após a derrubada da ditadura de Somoza, voltou a desfrutar do triunfo que sua geração conquistou para a Nicarágua. Foi nomeada Vice-Ministra da Cultura do novo governo, de onde promoveu o renascimento da vida cultural, que floresceu depois de tanta morte e destruição.
GEORGE EVANS / 2018
A poesia é uma espécie de raio que não cessa, disse o poeta espanhol Miguel Hernández. Há momentos em que existe algo em nós que nos faz ver além, é o milagre da poesia. Aquele segundo milagroso de visão sobrenatural. A partir daí, a partir daquele êxtase efêmero que você teve, você começa a trabalhar. Existem poemas que abortamos porque são impossíveis. Há outros que aparecem de repente e já completos, como se alguém os estivesse ditando para mim. Tenho poemas em que não consegui dizer bem o que queria e não me livrei deles só porque o poeta hondurenho Roberto Sosa me aconselhou: Não jogue fora, porque um dia você pode fazer um livro de poemas consertados. (Risos)
[…]
Acredito que homens e mulheres são todos seres humanos e é por isso que devemos nos relacionar de forma mais igualitária. Acho que a poesia trata do problema humano, independentemente de virmos ao mundo como homem ou mulher. A poesia nasce da sensibilidade da inteligência, e a inteligência não tem sexo, como disse Sor Juana Inés de la Cruz. Os críticos, no entanto, exageram muito a questão feminista e tentam classificá-la. Acredito que os poetas estão no mundo para contar ao mundo. Em alemão, parece-me que poesia, ou poema, significa dizer, Dichtung. Poesia, em última análise, é o que você diz ou fala, e você diz o que move sua sensibilidade.
DAISY ZAMORA
Fragmento de entrevista concedida a Francisco Ruiz Udiel, 2010.
VISÃO DE TEU CORPO
No quarto mal iluminado
eu tive um ditado fugaz:
a visão de teu corpo nu
como um deus jacente.
Isso foi tudo.
Indiferente
te ergueste a buscar tuas roupas
com naturalidade
enquanto eu tremia assustada
como a terra quando é partida pelo raio.
SER MULHER
Para María Guadalupe Valle Moreno
Ter nascido mulher significa:
pôr o teu corpo a serviço de outros,
dar teu tempo a outros,
pensar apenas em função de outros.
Ter nascido mulher significa:
que teu corpo não te pertence,
que teu tempo não te pertencia,
que teus pensamentos não te pertencem.
Nascer mulher é nascer no vazio.
Se não fosse porque teu corpo-albergue
assegura a continuidade dos homens
bem poderias não ter nascido.
Nascer mulher é vir ao nada.
À vida desabitada de ti mesma
na qual todos os demais – não teu coração –
decidem ou dispõem.
Nascer mulher é estar no fundo
do poço, do abismo, do fosso
que rodeia a cidade amuralhada
habitada por Eles, apenas por Eles,
aos quais terás que encanta, enganar,
servir, vender-se, bajular, humilhar-se,
rebelar-te, nadar contra a corrente, lutar,
gritar, gritar, gritar
até partir as pedras,
atravessar as gretas,
descartar a ponte levadiça, desmoronar os muros,
escalar o fosso, saltar sobre o abismo,
lançar-se sem asas para salvar o precipício
impulsionada por teu próprio coração
sustentada por teus próprios pensamentos
até que te livres do horror ao vazio
que terás que vencer
apenas com a tua voz e a tua palavra.
A MORTE ESTRANGEIRA
Para Francisco Zamora Gámez
e Rogelio Ramírez Mercado
Que paisagens de luz, que águas, que verdores,
que cometa solto voando contra o sol
no âmbito azul de uma manhã?
Que furioso aguaceiro, que remoto verão
deslumbrante de ondas e salitre,
que alamedas sombrias, que íntimo frescor
de algum jardim, que entardeceres?
Como se uma lua entre tantas luas,
uma noite do amor definitivo
sob o esplendor das estrelas?
Que vozes, que rumor de risos e passos,
que rostos já distantes, que ruas familiares,
que amanhecer afortunado na penumbra de um quarto,
que livros, que canções?
Que nostalgia final,
que última visão animou as tuas pupilas
quando a morte baixou as tuas pálpebras
nessa estranha terra?