Curadoria e tradução de Floriano Martins
Eu creio que o poeta deve ler livros de engenharia, inclusive de economia. Vejo que a linguagem, como às vezes dizia Stendhal, nem sempre está nos livros de literatura, já que possuem uma língua emprestada e repetida; em troca, os livros de ciência são livros que possuem a língua necessária para descrever fenômenos concretos. Por exemplo, a mim me encantam os termos dos economistas. Uma má aplicação econômica pode deprimir um mercado. Me parece uma frase incrível, deprimir um mercado, e, além disso, em física, em química, não existem outros modos de descrever a realidade que não seja através da precisão, e a precisão é fazer de uma língua precisamente um instrumento de comunicação. Lembro que Stendhal dizia que o estilo é acrescentar a um dado pensamento todas as circunstâncias para que esse pensamento produza o efeito que deve produzir; e tu recordarás que um dos modelos de Stendhal era o Código Napoleônico, que lia com frequência, porque era um código muito bem escrito.
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Eu não sei se consegui, porém meu propósito é sempre, quando escrevo um poema, eliminar, apagar. Deve ser um erro. Muitas vezes conservei com medo os originais de poemas que depois apareceram em livro, só para ver se me equivocava, e creio que não me equivoquei nunca, não porque os realizasse muito bem, mas sim porque teriam sido piores se os houvesse conservado como os concebera antes. Não creio, como Lope, que o melhor do poeta não é o escrito, mas sim o que depois apagou; eu penso que um poeta se faz à medida em que apaga, em que elimina os vícios adquiridos em suas leituras; Heidegger dizia que o estilo de um poeta é precisamente eliminar as influências de sua adolescência, varrê-las, limpá-las, ou seja, todo estilo de uma poesia genuína é um procedimento asséptico, como na medicina. Todos estamos repletos de velha retórica, todo pensamento está tingido de retórica de lugares comuns, e os lugares comuns podem ser também disparates; existem já, em literatura, lugares comuns do disparate, de modo que a assepsia, a limpeza, a eliminação de supérfluo é uma das coisas fundamentais em um poema, creio eu, para que um poeta possa escrever um grande poema.
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Li muito Góngora, como todos nós lemos muito Góngora, porém eu penso que Góngora é um grande erro na literatura em nossa língua, não ele mesmo, ele próprio não, como nunca ocorre em um poeta que busca e estréia novas formas. Góngora no sentido de gongorismo, de sua maestria, ou da direção de sua poesia, eu creio que em Góngora começa a decadência da poesia hispânica. Não considero que a poesia seja um disfarce permanente da realidade, eu não creio, e, portanto, creio que o gongorismo é um erro pelo qual vamos pagar por muitos anos e durante muito tempo. Isto é muito desagradável, muito petulante de minha parte dizê-lo, porém não me resta outro remédio que fazê-lo. Quevedo é um grande poeta que eu prefiro. Entendamos, há poemas de Góngora extraordinários; o que não me agrada de Góngora é a geração de 27, ou seja, seus discípulos, aqueles que fazem de Góngora um método e que convertem esse método em uma degradação do idioma castelhano.
HEBERTO PADILLA
“Entre la épica y la lírica de Heberto Padilla”, entrevista concedida a Miguel Angel Zapata. Revista INTI # 26-27. Rhode Island, 1988.
EM TEMPOS DIFÍCEIS
Àquele homem lhe pedira seu tempo
para que o juntassem ao tempo da História.
Pediram suas mãos,
porque para uma época difícil
nada é melhor do que um par de boas mãos.
Pediram seus olhos
que alguma vez tiveram lágrimas
para que contemplasse o lado claro
(especialmente o lado claro da vida)
porque para o horror basta um olho de assombro.
Pediram seus lábios
ressecados e rachados para afirmar,
para erigir, com cada afirmação, um sonho
(o-alto-sonho);
pediram as pernas,
duras e cheias de nós
(suas velhas pernas andarilhas)
porque em tempos difíceis
acaso haverá algo melhor do que um par de pernas
para a construção ou a trincheira?
Então lhe pediram o bosque que o nutriu desde criança,
com sua árvore obediente.
Pediram o peito, o coração, os ombros.
E lhe disseram
que era estritamente necessário.
Depois lhe explicaram
que esta doação resultaria inútil
caso não entregasse a língua,
porque em tempos difíceis
nada é tão útil para atalhar o ódio ou a mentira.
E finalmente rogaram
que, por favor, se pusesse a andar,
porque em tempos difíceis
esta é, sem dúvida, a prova decisiva.
HEINRICH HEINE
Em uma dessas tardes
porei luvas brancas
fraque negro,
chapéu;
irei à rua Behren,
quando não estiver ninguém no café,
e ainda não tenha se formado a reunião
e ninguém possa me reconhecer
exceto Heinrich Heine,
pois devo falar com ele,
que sabe quanto oculta a glória e o veneno,
o exílio e o reino
(e o sabe muito bem).
Cético, burlão, sentimental crente…
(Assim o descreveu Gautier)
Porém, de quem falava?
Dele ou de nós?
Isto porque, quem não teve opinião
contra seus sentimentos?
Contra quem não grasnou
um corvo de fel?
Em uma dessas tardes…
Embrulharei os olhos de Teresa,
e os porei diante de Heine
de modo que compreenda que também
soube deles e os desenterrei.
Direi a ele que é meu modo de ser contemporâneo.
Faremos uma longa reverência
(são olhos de outro século,
descobertos por mim…)
Esta tarde talvez…
Quando o brumoso melro
salte de galho em galho
e apenas Heine se encontre no Café,
e ninguém jamais venha a saber
que andei entre valquírias, nornas,
parcas do norte,
que eu também fui um desenterrador.
ESTADO DE SÍTIO
Por que esses pássaros estão cantando
se o milhafre-negro e a raposa se puseram donos da situação
e estão pedindo silêncio?
De repente o guarda-bosques terá que se dar conta,
porém será muito tarde.
As crianças não souberam manter o segredo de seus pais
e o lugar em que se escondia a família
foi descoberto mais rapidamente do que a duração do canto de um galo.
Afortunados os que olhas como pedras,
mais eloquentes que uma pedra, porque a época é terrível.
A vida deve ser vivida nos refúgios,
debaixo da terra.
As insígnias mais belas que desenhamos nos cadernos
escolares sempre conduzem à morte.
E a coragem, o que é sem uma metralhadora?