Jorge Gaitán Durán (Colômbia, 1924-1962)

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Curadoria e tradução de Floriano Martins

Eu tinha 15 anos em 1940. Durante os cinco anos que se seguiram fomos o que a guerra quis. Não chegamos a vestir uniforme, porém a propaganda modelou nossa imagem do mundo.
[…]
Nosso humanismo é talvez um paradoxo: sentimos na carne viva a fascinação do pensamento e da arte deste tempo que gritam com desespero a indigência do homem frente a uma História implacável e, ao mesmo tempo, acreditamos firmemente que podemos reformar o mundo.
[…]
Não escrevo sobre Sade por motivos estritamente literários ou filosóficos, nem muito menos porque sua obra favoreça de modo singular minhas obsessões ou contribua para libertar-me delas, mas sim por uma comprovação sobre minha intimidade, que talvez possa se estender a toda a intimidade humana: cada ser sente ou vislumbra, em certos instantes de sigilo trêmulo, que o erotismo introduz na vida um elemento de prazer e de festa, porém também de desordem e destruição. Se indagamos com rigor porque é assim, porque no amor mais intenso sempre percebemos o rastro de uma obscura maldição, somente o caso extremo de Sade nos responde exaustivamente. Quando o encontramos, em caminhos escarpados ou furtivos, um relâmpago aclara nossa experiência erótica. Compreendemos porque no exercício da sexualidade não somos a mesma pessoa que os demais veem na rua ou no trabalho ou no templo; porque a angústia e o horror nos invadem quando descobrimos que somos esse desconhecido que se desnuda e goza até o esquecimento de seu ser e se revolve e faísca como uma besta na obscenidade e no orgasmo. Tivemos a revelação de que todos podemos ser casos extremos, de que no mesmo ato com que outorgamos a vida, com que desencadeamos a reprodução – mesmo nos marcos estabelecidos pela Igreja e o Estado -, nos aproximamos vertiginosamente do mal e da morte.
[…]
Em certos momentos privilegiados o raio erótico pulveriza as múltiplas resistências materiais do corpo, aniquila o inferno social – pátria ou classe – onde moramos, rompe as trevas com que palavras e gestos de cólera ou suspeita, zelos ou fastio, separaram a dois seres que se amam – ou ao menos introduziram em sua vida comum, bastante frágil, perspectiva de separação. O amante vai já perder a amada, por um motivo frívolo ou que assim o pareça, quando o desejo se acende e o despoja do “ser individual” para lançá-los em um abraço trêmulo, em uma nuvem de esquecimento que significa retorno ao Ser ou à Unidade.

JORGE GAITÁN DURÁN
Trechos de Diario, publicado em Paris em 1959, citados por Darío Jaramillo Agudelo no Prólogo de uma antologia poética de Jorge Gaitán Durán. Bogotá, 1989.


SESTA

Sigo por teu corpo como pelo mundo.
Octavio Paz

Na sesta feliz entre as árvores,
Atravessa o sol as folhas, tudo arde,
O tempo corre entre a luz e o céu
Como um furtivo deus deixa as coisas.
O meio-dia flui em teu nu
Como o sopro de verão pelo ar.
Em teus seios trepidam os verões.
Sentes passar a terra por teu corpo
Como cruza uma estrela o firmamento.
À distância voa o mar como um pássaro.
Sobre o invencível pó em que dormes
Esta sombra ligeira marca o peso
De um abraço solar contra o destino.
Somos dois no alto de uma vida.
Somos um no alto do instante.
Teu corpo é uma lua impenetrável
Que o esplendor destrói nesta hora.
Quando abro tua carne firo o tempo,
Cubro com minha aflição a dinastia,
Basta minha voz para apagar os deuses,
Me afundo em ti para enfrentar a morte.
O meio-dia é vasto como o mundo.
Canta o corpo na luz, a terra canta,
Dança no sol de todas as cores,
Cada sabor é único em minha língua.
Sou um súbito amor por cada coisa.
Vejo, apalpo sem fim, cada sentido
É um espelho breve na delícia.
Te vejo envolta em um suor espesso.
Bebemos vinho tinto. As laranjas
Deixam seu agudo cheiro entre teus lábios.
São os grandes calores do verão.
O fugitivo sol busca tuas plantas,
O mundo foge pelo firmamento,
Enchemos este nada com as nuvens,
Furtamos ao ser cada momento,
Por igual te despi com nosso duelo.
Sei que vou morrer. Termina o dia


O INFERNO

Os homens já não vivem: como enterradas serpentes
No outono, como luas vagarosas no inverno,
No verão são águias ou tigres, sanguinários sóis
Que ardem no opaco mundo das coisas,
Guerreiros em vigília como os astros
Para que em imortais os converta o céu mentido.
Nobres ou perversos, mas efêmeros, porque é sua obra
Única por um instante arrancar do inferno
A mesma carne que aos deuses os delata,
Os amantes estão solitários na terra.
Ferozes, porque o que sempre dá recebe injustiça,
Querem ser como unhas ou dentes no outro,
Como a selva após a tormenta do verão, querem
Que ninguém veja sua debilidade, mas que se sofra violência.
Reunidos como belas bestas ou em fuga como criminosos
A luz os cega: o homem não tem tempo para reconhecer-se.
Se abraçam em sua miséria até encontrarem um corpo
Impenetrável onde só a morte toca fundo:
Suas bocas estão juntas, mas separadas seguem as almas.


SE JUNTAM DESNUDOS

Dois corpos que se juntam desnudos
Sozinhos na cidade onde habitam os astros
Inventam sem repouso o desejo.
Quando se amam não são vistos, belos
Ou atrozes ardem como dois mundos
Que uma vez a cada mil anos se cruzam no céu.
Somente na palavra, lua inútil, vemos
Como nossos corpos são quando se abraçam,
Se penetram, se expelem, sangram, rochas que se destroçam,
Estrelas inimigas, impérios que se enfrentam.
Se acariciam efêmeros entre mil sóis
Que se despedaçam, beijam-se até o fundo,
Saltam como dois delfins brancos no dia,
Passam como um único incêndio pela noite.

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