Curadoria e tradução de Floriano Martins
A vida espiritual de nossas ilhas – Cuba, Santo Domingo e Porto Rico, que, por sua comunidade de tradição e origem, podem ser sintonizadas em um acento, em um modo, em um ritmo peculiar e homogêneo de cultura – exige adequada expressão de seus artistas e pensadores. Isto já não é mera necessidade estética, mas sim imperativo essencial de uma personalidade que deve ser protegida e afirmada para que cumpra plenamente seu destino histórico. Criar uma arte que estranha seu próprio cenário: paisagem, costumes, sentido de afinidade histórica, sentimento cósmico de região, é criar somente uma miragem literária sem a indispensável gravidade específica de substância humana que lhe imprima caráter de permanência. Poeta que se abstrai de seu genuíno elemento, sob pretensa aspiração de universalidade e transcendentalismo, é peixe fora d’água, e realizará somente uma poesia acadêmica para uso de intelectuais. Isto não deve, de modo algum, ser interpretado no sentido de que pretendo que o poeta se subordine literalmente aos motivos populares ou regionais, recarregando sua obra com uma lastra espessa e crua de especificação local. Não. O poeta tomará assunto para sua arte de seu próprio ambiente, do baralho de interesses e paixões que lhe rodeia, do ritmo vital em que se desenvolve seu povoado e, estilizando-se a golpes de graça, de ironia e seleção, lhe retirará peso e cotidianidade, que é como romper as estreitas fronteiras regionais e tentar fortuna em espaços mais dilatados de universalidade, sem que se quebre por isto a raiz viva que lhe sustenta aderido à sua tradição e seu povo. E por povo devemos entender acomodação básica entre raça e paisagem. Em um sentido geral, o fato de que as Antilhas tenham sido colonizadas e povoadas pela raça hispânica não significa que após quatrocentos anos, que representam múltiplas gerações, continuemos tão espanhóis como nossos avós. O meio antilhano tem que haver influído tão poderosamente neles e em nós, que hoje possuímos, sem dúvida, traços, atitudes e características de raça nova.
LUIS PALÉS MATOS
“Hablando con Don Luis Palés Matos”, entrevista concedida a Angela Negrón Muñóz. El mundo. San Juan. 13/11/32.
A DOR DESCONHECIDA
Hoje me dei a pensar na dor distante
que sentirá minha carne, em seus aposentos
e recantos remotos que permanecem às escuras
em seu mundo de sombras e instintos espessos.
Por vezes, de seus ressonantes mares ocultos,
dessas inexploradas distâncias, vêm ecos
tão vagos, que se perdem como ondas desfalecidas
sobre uma praia imóvel de névoa e silêncio.
São mensagens que chegam desesperadamente
do ignorado fundo destes dramas secretos:
gritos de auxílio, vozes de socorro, gemidos,
como de um navio enorme que naufraga bem longe.
Oh esses limbos afundados em trevas fechadas;
esses desconhecidos horizontes internos
que subterraneamente se alargam em nós
distantes das zonas de luz do pensamento!
Quem sabe as mais profundas tragédias interiores,
os mais graves acontecimentos,
passam nestes mudos recantos de sombra
sem que chegue a nós o mais vago lamento,
e talvez, quando estamos rindo às gargalhadas,
sejamos o tenebroso cenário grotesco
dessa horrível dor que não tem resposta
e cuja voz inútil se perde sobre o vento.
VOZES DO MAR
I
Aldeia de pescadores
Terras obscuras, névoa constante, águas espessas,
e ali a aldeia fincada sobre as rochas como
um caranguejo. Os homens possuem naturezas
turvas, sob o influxo dos céus de chumbo.
O dia com molestas reverberações verticais
ressalta nos tetos com irritado grito;
o sexo abre seus gozos profundos e abismais
sob a noite oca feito um poço infinito.
Fermentam as tavernas, o vício transborda
como um tonel por sobre a embriagada horda
de pescadores em longas abstinências sexuais,
e se ouve no silêncio de amedrontada ruela
um grito desgarrado de mulher que se queixa
em meio a espantosas dores puerperais.
II
Meio-dia marinho
O sol, áspero e jovem, decompõe seus ouros
sobre o mar. A paisagem brilha como em um conto
mitológico, e estende-se um vago encantamento
de façanhas piratas e gotejantes tesouros.
Penso nos piratas de negra bílis selvagem
que povoaram a água de episódios sombrios,
e evoco uma convulsa tragédia de abordagem
sob o fulgor sinistro de incendiados navios.
O mar se achata lasso sob o sol, uma lenta
modorra vai ganhando a mente sonolenta
que em um vapor obscuro dissolve sua emoção…
A paisagem se põe quimérica e distante,
e se ouve sobre o ronco silêncio do oceano
um cantar langoroso de inefável atração.
III
Sugestão do mar
A lua sanguinolenta treme sobre o imenso
carvão noturno, abrindo clarões instantâneos,
e a costa difícil derrama um vapor denso
de cavernas marinhas e humores subterrâneos.
Abaixo, a água púgil, se desconjunta e racha,
muscular e ginástica com impulso selvagem,
e a voz do mar tomba como uma enorme caixa
de trovões sobre o vasto silêncio da paisagem.
A voz do mar, a lua sanguinolenta, o alento
viscoso das águas… Horror! Socorro! Sinto
que da sombra cheia de vozes intranquilas
surge uma massa informe, letárgica, crua,
e em meio à silenciosa noite de lua cheia
me crava imovelmente suas trágicas pupilas.
IV
Os pescadores sonham
Os pescadores têm pesadelos monstruosos.
Almas despertadas no marinho esforço,
quando dormem lançam grandes formas viscosas
por entre as cavernas fantásticas do sonho.
À meia-noite escutam gritos, e se levantam
medrosos. Da lua desce um silêncio astral;
o mar se mostra vasto e azul; as águas cantam;
estende-se o estrondo da harmonia sideral…
Oh mente marinheira que, de tanto habitar
o grandiosos, povoa-se de monstros como o mar!
Pescadores que um sonho de negro humor inunda,
passam a noite em fundos tormentos dilatados
e acordam ilógicos, sombrios, extraviados,
tal como se brotassem de uma imersão profunda.
O SONHO
O sonho é o estado natural. Nossas vidas
turvam-se somente com leves, fugazes movimentos,
superfície de água imóvel perenemente muda,
muito além dos limites do espaço e do tempo.
Nossa ação se dissolve como uma vaga onda.
Tudo cessa na oculta vontade do silêncio
cuja oleosa essência de mutismo circula
pela vasta engrenagem vital do universo.
Oh tu, que de tua própria realidade afastado
forjas, lavras, gritas, ridículo boneco
cujos braços inúteis se agitam na sombra!
— Só és sonho efêmero dentro do sonho eterno.