Reina María Rodríguez (Cuba, 1952)

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Curadoria e tradução de Floriano Martins

Sempre fiz poemas para um tu que inventei e precisava – e que há muito tempo não faço e não posso mais inventar: desse tu, sinto falta. Não é um tu erótico ou amoroso, é apenas mais do que isso: um amigo incondicional – como aqueles seres imaginários que tivemos na infância. Agora, na fase capital de recolher os Yaquis, pensava em dar esses textos a quem – sem que nunca o soubesse – eu os dedicava mentalmente. Existem alguns: não poucos, não muitos.

Escrevi para eles – não como inspiração –, mas como destino. Seus textos saíram de imagens do cotidiano: uma entrada com alguém no café; um unguento colocado por um golpe na testa; um beijo dado nas margens dos lábios sem querer; uma dose de uísque que bebemos da garrafa âmbar em uma praia abandonada. Assim como as borboletas batem as asas ou as lebres saltam, a porta do meu olhar se abre e se fecha, quando leio aquelas frases que outrora pertenceram a alguém.

Assim, eles voltaram daquela fração de segundos que se amplia para o que era esta vida – viveu mais daquelas imagens quebradas do passado, e seu esplendor no presente –, do que da realidade.

Triste é que agora, quando eu coleciono esses despojos, definitivamente, quase nenhum deles merece o espaço que lhes dediquei. Como se o poema reagisse apenas validando com o tempo, um lugar na correspondência dos afetos. Eles – aqueles que usei como tus, intermediários, desintegram-se como fantasmas para que o poema fosse refeito. Em outras palavras, o da dor e das perdas, apenas aquelas palavras permaneceram no presente, e as sombras do que eram, agachadas, dentro delas.

Considerando que o tu que eles eram permanece intacto, mas ao mesmo tempo abolido dentro do texto. O poema é como aquela tábua de salvação que jogamos ao mar quando qualquer outra resistência é impossível. A sua condição (anfíbia), faz com que se mova entre as memórias pessoais que a memória lhes trouxe – restos de figuras que se apagam na praia na hora errada, devido à sua incapacidade de agir. Por que alguns sim e outros não? Por que não seriam todas frases? Por que essa hierarquia de memórias?

Acho que esse privilégio pertence inteiramente à categoria das imagens. Já que a intuição está ligada a uma duração e algumas alcançam, mais do que outras, a permanência em um espaço e em um tempo. Como a minha vida – sem imaginação –, no entanto, ela se passou entre as imagens, foram apenas: sensações de queimação que, em grande parte, queimaram a epiderme, mas não penetraram mais: pela fragilidade, e pela própria natureza passageira da imagem – como disse George Didi-Huberman.

Ao tocar essas imagens por meio de um desvio, o poema elabora uma história em torno de um tema que vai articulando múltiplas relações vertiginosas – e álibis, onde estas vão caindo como em um poço que as coleta com redes de palavras arbitrárias, unidas mais pelo que sentimos a respeito delas do que por seus significados no dicionário, como já disse. Por isso, as dissecações que nos paralisam são recorrentes, cortando a memória com uma violência que promove a queda, até que conduzem à destruição dos ícones que permitiram os desejos não realizados que, em determinado momento, originaram os textos. Eles ruminam e não sobra nada. Os corpos, as texturas, os sentimentos se desfazem e até desaparecem. Preocupa-me muito aquele terreno carbonizado por onde me movo. Um piano, um nome; a cor que um objeto tinha, pois tudo se perde quando eu pisco. Um buraco negro para onde vai tudo o que eu queria. É perigoso, porque não o vemos quando acontece, mas muito depois, quando não podemos mais nos agarrar a nada. Alguém diria: hora de queimar os navios. Porém mais do que isso, os navios nunca existiram ou nos levaram a qualquer lugar, a não ser para a própria imagem que os trespassou.

O vazio em que entro se refugia em sua própria não criação: é seu deus, aquele voo. Há muito tempo que passo por aquele vazio que me parece um horizonte, mas não é. Estou sozinho entrando em seu percurso, desprotegido, mas livre da relação entre o eu e o tu que me encurralou. Agora eu sei que ninguém pode vir ou voltar deles: nem há um limite à vista. Porque o tu foi desfigurado com o tempo, tornando-se parte de si mesmo, caindo na armadilha. Eu comi meus tus também! O self o engoliu (autofagia). Talvez tenha havido uma revanche (entre eles) da qual nenhum saiu vitorioso. Ou, talvez, tenha sido eu que os engoliu em um instante, deixando apenas frases soltas e restolho do que era um passado.

REYNA MARÍA RODRIGUES / “Entreabrir”, Esferas del tiempo, 2020.


A ONDA

Adoraríamos conhecer a onda / responsável pelo naufrágio, mas acontece que nós somos essa mesma onda.
Inger Cristhense, ¿Viste el mar?

Já viste o mar?
Esse mar que não tem fundo,
não tem peixes
– muito menos bocas que auxiliem –,
na imbecil que te levava o Lema
ida e volta para te batizar
por um centavo jogado na baía?
Vale tão pouco e é tão azul!

O mar com sua indiferença
não me deixa navegar – não me deixa ser –,
com a dor cravada
contra o girassol
pisoteado pelas pessoas;
com teu meio sorriso que foram dias
– que foram ondas –,
que já não explodem de dor.

II

Na volta da lancha,
o carro demasiado alto onde subi,
e o motorista me arranhou a mão sem querer
para que não caísse no chão.
Esse motorista que repuxa
as poucas formas que tenho de ser
– e de sentir – que me restam:
onde um não ser
que não quer converter-se em eu
é o único atrito que tenho:
aquele contato de pele pegajosa
contra o ralado da mão
com sua eterna juventude,
contaminando-me de uma luz
que relampagueia no cristal,
e acende,
por um só momento no retrovisor:
teu rosto
do outro mar de onde parti
(que não é o mesmo,
e que tampouco é outro)
até onde não mais alcanço,
deslizando.


COMO ROTO

…tudo de repente era realmente sem esperanças, em qualquer caso, distinto, como roto.
T.B.

Para Elis, Mercedes, Caridad e Chichí

Provenho dessas construtoras,
sentadas à cabeceira desta mesa
com louça de porcelana espanhola, inglesa ou chinesa:
Portmeirion Botanic Gardens
que a minha filha coleciona e onde
as flores não estão partidas.
Ainda não vemos rachaduras,
atravessando-as – aquelas que tocava,
e tocava
com a gema pontiaguda
como se fossem rios de um mapa
que tornasse a surgir em uma ilha afundada –,
para não esquecer aqueles dias
quando não estávamos tristes,
e escutávamos a música de um acordeão
no fundo dos bares mais próximos,
e até cheirávamos as flores da Páscoa
coladas na toalha da mesa.


CONTO INFANTIL

A galinha que tem olhos fundos,
pôs um ovo maior do mundo:
as finas linhas brancas de suas patas
com paixão afincando-se no chão
quando cacareja e parecem se quebrar.

É diligente.
Primeiro assentar a casa – diz.
Varrer os dejetos
(as penas amarelas do galo
que cruzou o mar até outro galinheiro).

A galinha é teimosa.
Sabe que não poderia manter o cerco apertado
onde os pintinhos crescem
e escapam impedindo seu trabalho
de cacarejar.

Assim ela conseguiu ser dona do pátio,
da família
molhada e seca
de acordo com o clima de um pequeno lugar

onde à noite,
ensimesmada em seu sonho de grandeza
sobe no velho pau com as unhas
e vive
embora pareça morta
sobre ele desgarrada.

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