3 Poemas de Lourdes María González Herrero (Holguín, Cuba, 1952)

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Curadoria de Floriano Martins
Tradução de Elys Regina Zils

Lourdes María González Herrero (Holguín, Cuba, 1952). Poeta, narradora e editora. Publicou os livros de poemas: Tenaces como el fuego (Premio de la Ciudad 1986); La semejante costumbre que nos une (Premio de la Ciudad 1988); Una libertad real (Primeira Menção no Concurso Julián del Casal de la UNEAC, 1989, e Premio de la Ciudad, 1991); La desmemoria (Premio de Poesía Adelaida del Mármol para las Provincias Orientales, 1992). Em 1992, publicou um livro de crônicas intitulado: Acercamiento a la poesía de habla hispana escrita por mujeres. Em 1997 ganhou o Premio de la Ciudad no gênero Narrativa com seu livro Papeles de un naufragio, publicado em 1999. Sua coleção de poemas El luminoso pájaro de la memoria foi editada pela editora Lunarena de Puebla, México. A editora francesa Indigo publicou seu livro Dossier d’un naufrage em francês, em julho de 2002. Presidiu o júri do Prêmio Alba Narrativa de Novela 2015. Foi júri da Bienal de Novela José Eustasio Rivera, 2016 e 2021, Neiva, Colômbia. É membra da UNEAC e do seu Conselho Nacional. Dirige o Sello Ediciones Holguín. É diretora da revista de Arte y Literatura Diéresis.


O DRAGÃO DO SILÊNCIO

Encaro o olho dourado da culpa e dentro vejo os contornos nebulosos de outra ilha chamada lenda.
Exijo de mim uma concentração fascinada para entrar no silêncio, para perceber dentro dele as causas do meu constante apego à casa da dor.
O risco é colossalmente intenso.
Atrás dos nublados horizontes está a mão de minha mãe estendida para se salvar.
Atrás permanece aquele que sabe remar contra a corrente, mas ainda não sabe vencer.
O círculo se expande e é inserida a coroa arruinada que é o brasão da minha idade,
vai perdendo força a miserável sensação de viver perseguindo os sinos de água, as formas da farinha, os vazios nas estações da mesa.
O silêncio engendra poder.
Dizem que garante que a felicidade surja como a água de uma nascente.
O perigo é inexorável.
Encaro o olho dourado do medo.
Nele há uma sombra que me conquista.
É a sombra do dia do meu nascimento.
A sombra do lugar onde chorei.
A sombra do esforço que se torna cada vez mais difusa, mais distante, desaparece e fica apenas o fulgor dourado do esquecimento, e o silêncio.


CHUVA PASSAGEIRA

A chuva tornou-se na cidade uma evocada passageira.
Chuva, a passageira,
eu quero transitar em sua umidade muito longe deste lugar,
passageira que comigo nasceste pelos caminhos
daquele outro tempo nunca igual,
que obrigaste ao caído a ser o herói
e cresceste uma vez na angustiada palma da minha mão
como um raro desígnio de sorte.
Passageira do vale e do cume
onde o sol te surpreende entorpecido por tudo,
do mesmo vale e do cume
onde a lua te embala e te protege.
Passageira temível que possuis e argumentas e comprovas
todos os sinais mágicos da poeira e da claridade.
Passageira,
regressa para mudar a fachada da casa,
para ressurgir o eco de cores que se tornou tão triste,
para condenar os fantasmas do sol em sua umidade sombria,
cai sobre mim e sobre todas as coisas.
Passageira do abismo imortal,
adianta o relógio na única igreja
e vem nos convencer desta vida que às vezes eu esqueço
entre papéis e almofadas de falso linho que incita a passagem livre.
Passageira que se não chegas hoje
será necessário quebrantar quem sabe que luz conhecida ou que animal
que afugente esse calor entre mares e terras,
mas a passageira ainda está aqui, atrás da minha pupila e na parede da casa,
sem que nada convoque sua queda,
sua precipitação plúmbea
lentamente.
Passageira a chuva,
venha aqui para colorir-me com seu fascínio de criança, de velha, de dona, de rainha do absurdo.
Vem que convalesço ainda desses pequenos prazeres cotidianos
e você pode aliviar minhas feições com seu fresco puro e discordante caindo sobre minha
memória, rodando pelo relevo do meu corpo.
Passageira fugaz do sulco empoeirado, da estrada, da cidade,
ordena de uma vez por todas minha solidão,
faça o que puder aqui
ordene, por favor, neste dia o horror do meu ser
ou me mande para o inferno de sua ausência por anos e anos e mais anos.
Passageira de planícies e campos de trigo mais luminosos que o próprio brilho eterno,
a sede consome o pé do abatido
e condena a pele do motivado atroz pela violência.
Passageira, não deixe sem encher meu copo de paciência nem de supremo amor,
nem deixe vazia a razão, nem o povo:
agora eu sei, passageira, sua derrota,
tens lanças tão leves
que me matas e eu nem sinto
mais do que o cheiro de sal, de origem, de umidade.
Chuva, a passageira, venha,
orienta o desajeitado vento que aprisiona meus pés,
vença estas tempestades em que não tenho outra função senão a de navio,
de barco e náufrago
enquanto permaneces em silêncio obstinada em retornar à grande memória.
Passageira que iça furiosa sua bandeira de furacão,
de ventos cúmplices e contrários,
desata o fio que une esta mistura de ideias com o tempo,
não vá romper o do amor, passageira constante,
que depois não existe mais vida nem o menor vestígio.
Passageira de águas e descendentes que acaricias a pequena montanha verde
e a escuridão mística do poço,
passageira, estranha passageira que fecha minhas janelas e recria meus sóis
nas imóveis fendas deslumbrantes em que ardeu o sol sua esfera múltipla.
Passageira,
e de repente queres renunciar de nos trazer a música,
a única música compreendida pelos sentidos que você mesma banhou em seu rubor.
Passageira
a chuva,
passageira que esqueço debaixo do teto, como se fosse possível esquecer o amor.
Passageira a chuva:
quero viajar em sua umidade muito longe deste lugar
me estremecendo.


OS PAVILHÕES

Chove nos pavilhões.
O céu escurece as claraboias e, no entanto, se estico minha mão, ela alcança para tocar as cúpulas e os grãos.
Somos feitos à semelhança do efêmero.
Permanecemos deitados nas longas tardes sem saber por quê. No entanto, nos encontramos novamente nos lençóis, frios desde o amanhecer.
Encontramo-nos refazendo as paredes, há anos estamos refazendo-as com nossas mãos inúteis. A inutilidade é um bem raro que oprime, oprime, encerra.

Vejo pelas janelas o brilho das peles dos lagartos acomodados na chuva, entre as folhas das malangas, pequenas na dimensão do mundo.
Abarco as distâncias com as mãos, submergindo-as nas fontes para tocar suas águas.
Examino as fronteiras, os abismos que simulam restaurar o vazio para que eu erre e morra, mas já estou morta, comecei a labuta morta, só minha sombra vai entre as palavras matando os sonhos. Eu não os quero. Me basta o sono inquieto do Príncipe.

(Escrevo me basta e fico quieta, enquanto minhas mãos vão atrás dos corpos amados. Engano os corpos amados. Sonhos como o delírio do Príncipe.)

As tardes nos pavilhões são castigadas apesar da chuva caindo nas torrentes da memória mal tratada, quer dizer, mal construída, quer dizer, na má memória, na que não guarda o necessário, na que não guarda os costumes: comer dentro de um prato fundo, fatigar-se olhando os perfis que aparecem como estranhos no espelho, atravessar as áreas brancas das ruas, fugidos da poeira, fugitivos, fugindo de uma sombra que nos persegue, nos oprime, nos encerra.
Humilde despertar daquele que sabe que está morto.
Abro os olhos na realidade da morte para olhar desobediente para o mundo, o fragmento que consegui olhar e no qual, porém, vejo os corpos amados, o triunfo. Se conseguir convocá-los ainda que duvidosamente, descansarei ainda mais, sob a manta azul, segura, enquanto a água em ondas persiste nos pavilhões.
Que jubilosa origem o descanso. Que jubiloso ponto, oculto das curiosidades, sem aparência possível.
Dê-me o direito de ficar na memória apenas o tempo suficiente para retornar aos corpos amados como se volta à viagem de despedida, ao trem da infância, à glória compartilhada nas pequenas marginalidades. Um instante na morte para entreabrir a vida, uma única cor e o milagre acontecerá como um arribo, como finalmente tocar as pontas do novelo que se busca e busca e busca novamente, tecendo nas escapadas.
Que alegria enfim a sombra, como a da cabra íbex que parece tranquila enquanto foge, quando clama do seu interior por uma doce quietude e seu coração se agita, cada vez mais, seguindo o caminho pela linha marcada.
É o passado, o arco entre os tempos.
Quanto clamoroso regozijo dá saber que podendo ser tantos é para sempre um.
Chove nos pavilhões. Tenho a impressão de que a água pode destruir a casa que construímos, mas já sei que não basta uma impressão, seria necessária uma imagem: portas e portas, grades, papéis, metais, revestimentos, figuras flutuando no mar transbordad0 nos mosaicos.
Não basta uma impressão e meus olhos estão cegos.
Que felicidade retornar à liberdade da sombra, enviada ao fruto que se deseja. Sabia disso antes de morrer, sabia disso antes de cruzar. Posso ainda reter certas bondades da memória mal tratada. Algo que nem todos nós dizemos.
O tempo passa como a raposa de emilio rondando as eras, mas é apenas um animal que intimida e, além disso, a água cai com força, impedindo qualquer demonstração do medo que se sente antes do impulso de crescer. Antes da vida.
Me protejo da água pela primeira vez.
Quero ouvi-la. Encarnação do mito de uma realidade que mal está nas páginas de um livro, metáfora da verdade, da verdade leve que aparece ao morrer para expressar a vaguidade com que se viveu.
Os pavilhões persistem ¬-como o Príncipe- em criar um sonho, sobre eles a chuva furiosamente o arrasa, arrasa todas as batalhas, e, às vezes, no som metálico da água tenho a impressão de ouvir o leve roçar dos corpos amados, a leve obstinação do amor, seus vícios.
Quão feliz é imaginar, com quanto ardor se unem os desejos para formar um impulso: o de abrir uma fresta na morte para apoderar-se da vida.

(Tem que estar morto para ser condescendente, tem que ter, como eu, ao alcance de suas mãos, as distâncias que não vou cruzar, as cúpulas e os grãos que só tocarei se falhar minha memória maltratada, quer dizer, minha memória ruim)

Chove nos pavilhões enquanto o tempo me exclui, me dispensa nas ruas estreitas que circundam os espaços. Seria aterrorizante estar vivo perseguindo a Quimera, cumprindo o destino. Mas com que alegria transito conhecendo a rota dos torsos amados e das mãos, livres agora do presente, emancipados, irredutíveis apesar da água que em ondas furiosas cai sobre os pavilhões.

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