Fernanda Boaventura (Minas Gerais, 1998). Poeta. Publicou as plaquetes Ao fim de uma oração (2017) e Fac me tecum pie flere (2018). Poeta afeita ao versículo bíblico, com valiosa densidade imagética. Leitora de Herberto Helder, Daniel Faria, Sylvia Plath, Rilke, Simone Weil, T. S. Eliot, Leonard Cohen, Carminha Gouthier, William Blake, dentre outros, porém atenta ao cotidiano, à vida descarnada a cada mínimo gesto da existência humana.
1.
7.ª dor de Maria
Certa vez atirei-me aos pés do vosso corpo à procura dos cursos d’água, ó criança afogada no poço
Dissestes: Não há um homem vivo que arranque este espinho do coração das algas
Certa vez arranquei as algas para que vós deitastes sobre a areia morna, ó criança da ânfora de ouro
Dissestes: Como é grande vosso ventre
Certa vez disse que amava a vós
Dissestes: Doastes vosso sangue ao covil onde encerram-me em uma pedra
2.
Abandonamos os filhos do medo no clarão da tua espera,
à procura da estrela que nos lavasse as cinzas do corpo.
Tu doaste a roseira aos pássaros que trouxeram a morte em uma âncora coberta de sarça.
A morte que tanto pedi ao doce sol noturno do teu amor.
O mundo que entrevi através das tuas chagas quando revelaste as três vezes em que eu negaria o teu nome.
Tu choraste, mas ninguém nunca soube se sonhavas.
E quando as mulheres mergulharam nas águas brancas do abandono,
sorvemos a última gota da seiva infinita do teu sofrimento santo.
3.
As mãos que Pedro e João levaram ao peito quando correram ao teu sepulcro vazio.
Pois estás vivo, e havias sonhado como homem no entardecer do mundo.
Colheste então o terror dos meus olhos para despertar os beija-flores de seu sono de mil lanças.
Trazes o clarão imenso de um sol rendido.
E amo-te como uma mulher ama um homem,
e uma menina ama a Deus.
4.
Imploro por um leito em vossa memória, ó apóstolo cético.
Ensina-me a fonte que afunda a carne,
a canção que jamais encerra o sangue.
As palavras são rouxinóis sem peso a seguirem a guerra.
E então, a sede da rainha é nomeada herança.
Pois a misericórdia do sol é violenta quando as águas se levantam sobre a névoa inquebrantável,
e os sonhos não me perdoam por revelar o norte de seus rostos ao temor das corças.
5.
No centro da tua testa um menino me sorria, e dizia: Tu és uma mulher.
As lágrimas que escorriam pelo teu rosto caiam sobre a vida encarnada no fruto do silêncio,
e meu amor por ti docemente se oferecia à miragem da Cruz no sepulcro das flores.
Quando vieste para me encontrar perdida no tempo,
o orvalho tomou para si a ferida que partiu a noite em ausência e esperança.
A mulher que de mim fizeste estará face a face com o amor e dirá adeus ao florescer do mundo.
Pois só pela luz do meu ventre a terra perdoará os seus filhos quando Maria mirar os seus olhos na superfície espelhada da fonte.
6.
Devo obediência ao crepúsculo que ensurdece o meu ventre.
A fúria do meu amor é arrastada para a guerra que nunca foi escrita.
O sangue não canta o triunfo da areia.
E a casa é silêncio que emerge da criança esquecida.
Deixa-os morrer.
A prece das cinzas aguarda a floração dos bosques.
Mas a vaidade não sucumbe à morte delicada de um refúgio na névoa.
Se peço a alguém que não morra,
o vento perturba o pó sobre as montanhas salvas pela primavera do esquecimento.
Um grito talhado na nuvem.
Onde o canto traz as lágrimas à luz,
meu cavalo perde a memória do milagre.
A quem fere o esquecimento?
As mulheres procuram a ciência de seu ocaso nas veredas que o sol abre.
E os filhos crescem, e não conhecem a paz.
A seiva que escorre da morte é o espírito da montanha em que se reconhecem.
Onde as flores os atingem?
O tempo é suficiente à escuridão que trazem as águas.
Mas os sonhos nunca tiveram misericórdia das casas onde a alegria concebe o rosto de seus temores.
isso é poesia!!!!!!!!!!