Liana Timm (Brasil, 1947). Artista multimídia, arquiteta, poeta e designer. Vive em Porto Alegre com atelier em permanente ebulição. Sua produção mescla manualidade e tecnologia, conceito e materialidade, história e contemporaneidade. Transita pelas artes visuais, pela literatura, pelas artes cênicas e pela música. Professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1976/96). Especialista em Arquitetura habitacional e Mestre em Educação pela UFRGS. Realizou 76 exposições individuais, sendo as mais importantes: Pinacoteca do Estado de São Paulo/SP/Brasil, Memorial da América Latina /SP/SP/Brasil, Centro Cultural Correios e Telégrafos/Rio de Janeiro/RJ/ Brasil, Museu Brasileiro da Escultura/São Paulo/SP/Brasil, Fundação Cultural do Distrito Federal/Brasília/DF, Museu da Gravura cidade de Curitiba/PR/Brasil, Museu de Arte do Rio Grande do Sul/Porto Alegre/RS/Brasil. 35 shows musicais na cidade de Porto Alegre e interior do Rio Grande do Sul/Brasil, em Montevideo/Uruguai, em Miami/EUA e em Toulx Sainte Croix/França, em Culiacán/México. Publicou 66 livros, destes 19 são individuais de poesia sendo que o penúltimo reúne sua produção poética de 35 anos. Recebeu 17 prêmios nas diversas áreas de atuação. Atualmente ocupa a presidência da Associação Gaúcha de Escritores/AGES. Desenvolve suas produções culturais e projetos editorias através da TERRITÓRIO DAS ARTES.
*****
Soletrar o Verbo
O voo de pequenos insetos iluminados por um raio de sol. Uma espécie de dança desvairada e sem sentido. Para nós não tem sentido. A mulher sentada em um banco de pedra, entre duas árvores, tem o olhar vago e não se retém no movimento intenso. Nada a comoverá, pensa, salvo se for tomada pela riqueza da realidade. Alguma coisa que poderia chamar de âmago do real. Como seria bom, pensa, ser um ser da natureza. Uma mulher imersa na verdade, no âmago. Não a superfície, não a aparência, não o voo do pássaro de galho em galho. Hoje não a comovem as sombras alongadas, o brilho fugaz dos galhos, o som distante de água que cai. Tudo é distante, pois sente a irrelevância do mundo. O mundo só será suficiente se ela for o mundo. Não suspira, e não quer rede de segurança. Posso dizer que os fantasmas voltam nas madrugadas?
Ou que ela está perdida no sonho? O que é certo é que agora a natureza não a alcança. Ela quer soletrar o verbo amar. E quer tudo ao vivo. Ardente. Ela quer que os seus dedos, estes longos dedos que nos sugerem a música, toquem no núcleo duro da vida. Nada menos do que isto a satisfará. Olha os insetos na sua celebração de um ritual desconhecido e repete: nada menos do que o âmago da vida.
Este cenário foi construído com os versos de poemas de Liana Timm, do seu novo livro,
Extravagante. Ela nos diz, que deseja soletrar o verbo amar. E que deseja o âmago do real. Quero tudo ao vivo, nos sussurra. E que força tem esta voz de cantora repentinamente amortecida. Liana está perdida no sonho. É ela que nos esclarece. Mas o seu sonho é a dimensão do real.
Há muito sabemos que o sonho indica a dimensão da realidade, o âmago do real. Estou me referindo ao sonho do artista. E quem será mais artista do que esta mulher que se lançou sem medo de perda – sem rede de segurança, diz o seu verso – no campo da literatura, no espaço teatral, na recriação de clássicos vertidos para o diálogo, na invenção de imagens tão visuais que parecem amantes do nosso olhar, no canto e recanto dos nossos poetas populares. Sempre tivemos artistas que transcendem os gêneros, mas poucos são capazes de conviver a simultaneidade. Liana Timm é capaz de criar núcleos duros de realidade.
Este livro, Extravagante, continua a sua saga que parece sem fim. Ela indaga sobre a dimensão do ser e nos diz os seus parâmetros, o que a permite viver. O tamanho deste viver é estabele-cido pela permanente pergunta sobre a verdade, o amor, o sentimento, o convívio, o afeto, a dor e o nascimento do ser enquanto ser do universo. A sua pergunta é um diálogo com o existente.
Felizmente não podemos desvendar a artista Liana Timm. Não devemos desnudar o enigma. O mistério nos enriquece. Apontar os seus campos de atuação, dizer dos seus desejos, anotar os seus limites e parâmetros autoimpostos, e di-zer que nós, também nós, os seus leitores, queremos o âmago do real e que os nossos limites se expandem quando a lemos. Dizer isto da artista é dizer quase tudo. Talvez devêssemos dizer ainda que – tudo leva a crer – somos habitantes da mesma galáxia. Mas isso pode ser excesso de intimidade. Melhor acrescentar, mesclando as nossas com as suas palavras: os fantasmas voltam nas madrugadas, ficamos arrepiados, mas continuamos tentando soletrar o verbo amar.
Jacob Klintowitz
INSTÁVEL
o celular toca e vibra
cai na caixa
fico sem saber se
notícias boas ou ruins
o número?
não reconheço
mas o enredo invento
como sala de visita
meu iPhone já meio ultrapassado
funciona ainda bem
conecta além da terra
reverbera
numa acústica marítima
sem rede de segurança
invadida por mensagens
baixadas antes do modo avião
fico à deriva
nesse céu de nuvens
passageira
DECLARAÇÃO
escrevo de um jeito
diria só meu
numa rebeldia contida
carimbada de sentidos
e cancelamentos
mas tudo menos isso
revisões e adversidades
acentos e vírgulas
exclamações!
aspas onde não cabem
travessões inoportunos
e pontos finais
colocados no meio de uma história
quero tudo ao vivo
quero a cor mesmo
desbotada do arco-íris
de letra em letra
vou compondo
interrogações
UM NOME PRÓPRIO
que a tentação nos vença
em todas as horas do dia
que os frutos proibidos
sejam saboreados como devem
que as transgressões nos tirem de um paraíso
inexistente
– tudo é premente no agora
que a rebeldia seja nossa bandeira
erguida num mastro de reivindicações
que tudo o mais se desmantele no ar
quero as diferenças
– apogeu das raças
e a liberdade
no direito de cada um ser
SEGUNDA INTENÇÃO
Não escrevo diários nem tenho coleções
e as agendas me servem
como um exercício de geografia
Minha vontade é forte
animada e permanente
como a imaginação
Não promete nada,
nem na segunda nem em dia algum
Aliás os dias da semana não importam
Terça pode ser domingo e domingo…
um nome de planta
ou animal de estimação
Não planejo o tempo
e ser bem comportada fere minha natureza Pisar em falso
uma descoberta que me dá um medo bom
Se lá adiante
percebo o equívoco de uma escolha
entendo isso como…
provocação
ARVOREDO
alguns têm boa mão para as plantas
regam vasos e jardins
na sequência dos dias
as minhas plantas estão na rua
ao vento à chuva
florindo desfolhando
nos quintais da infância
nas janelas em cores que se abrem
no verde infinito das folhas
sombreando as dores e o chão
crescem calmas a seu tempo
as folhagens rasteiras
as trepadeiras
as cercas vivas
cresce essa muda de laranjeira
no canteiro da recordação
e meu coração vaga
como a água
encharcado de emoção
O DIÁRIO
sem vocação para a rotina
anotei várias vezes num caderno
o que poderia ser diário
cada dia tem história íntima
ambivalentes hipocrisias
em rascunhadas crônicas
a caneta não escreve mais
é deixada ao lado do teclado
como seta
de aguda pontaria
vai na questão mais funda
vazando e incendiando
com passos que partem
frases fora da tela
SEM RESPOSTAS
as coisas me surpreendem!
o plissado de uma saia
botões dentro de gavetas
um pastel frito
espinhos no caule de uma flor
e livros a andar nas prateleiras
eles caem em nossas mãos
à sombra dos castanheiros
em sussurros ébrios
sob o oxigênio dos mergulhos
mordo páginas de sabores vários
lambo a capa de flores
cheiro a página de rosto
me escondo na lombada
e passeio no folhar do miolo
à noite sopro a poeira
incendiando o mofo
que brilha abandonado
no insucesso de sobrevidas
MEDITAÇÃO
o olhar do artista
sai do coração
escuta o coração em avalanche
escancara dúvidas
desejos não assumidos
fantasias rejeitadas
atrás do vidro
inquietado ser
ou não ser o que se quer
ali é onde se é
na criação de mundos próprios
um coração leve
tem ideias seriamente apaixonadas
comprometidas com as águas
que correm por hábito
entre as palavras
neste impulso
frequências inaudíveis a olho nu
escutam o verão no inverno
como essência energética
da aventura de criar
sempre aqui ali lá
e acolá
Muito bons, os poemas!