Apresentação: Floriano Martins
Tradução: Leda Rita Cintra
Nos anos 1940 o poeta León-Gontran Damas fundaria, ao lado de Aimé Césaire e Leopoldo Sédar Senghor, o primeiro da Martinica, o segundo de Senegal – coincidindo com a residência dos três em Paris –, uma corrente literária conhecida como Negritude cujo motor central buscava a valorização da cultura negra, em face da opressão sofrida pela colonização francesa. O termo, embora criado por Aimé Césaire, posteriormente seria descartado, por ser considerado racista. León-Gontran Damas nasceu na Guiana Francesa em 1912. A exemplo de seus dois companheiros de jornada criativa, ele também se envolveu com a política, tendo sido deputado. Viveu uma parte de sua vida em Paris, vindo a estudar idiomas como japonês, russo e baolê. Sua profunda paixão pelo jazz daria à sua poesia uma intensidade rítmica bastante peculiar. Seu interesse pelo Surrealismo é despertado ao conhecer o panfleto Légitime défense, de André Breton. Seu livro Pigments (1937), prefaciado por André Gide, chegou a ser traduzido a vários idiomas, gerando uma positiva repercussão internacional de sua poesia. Entre seus livros, cabe destacar Graffiti (1952), Black-Label (1956), e Névralgies (1966).
SOLDO
Para Aimé Césaire
Eu tenho a impressão de ser ridículo
em seus sapatos
em seus smokings
em seu plastron
em seu colarinho falso
em seu monóculo
em seu chapéu melão
Eu tenho a impressão de ser ridículo
com meus dedos dos pés que não são feitos
para transpirar da manhã até à tarde que me despe
com o cueiro que enfraquece os membros
e tira de meu corpo a beleza do tapa sexo
Eu tenho a impressão de ser ridículo
com meu pescoço feito a chaminé de uma usina
e esses males de cabeça que cessam
toda vez que eu saúdo alguém
Eu tenho a impressão de ser ridículo
em seus salões
em suas maneiras
em seus salamaleques
em sua múltipla necessidade de macaquices
Eu tenho a impressão de ser ridículo
com tudo o que eles contam
até que à tarde lhes sirvam
um pouco de água morna
e doces frios
Eu tenho a impressão de ser ridículo
com as teorias que eles temperam
ao gosto de suas necessidades
de suas paixões
de seus instintos abertos à noite
em forma de capachos
Eu tenho a impressão de ser ridículo
entre eles cúmplice
entre eles cafetão
entre eles estrangulador
as mãos assustadoramente vermelhas
do sangue da sua ci-vi-li-za-ção
ELES VIERAM ESSA NOITE
Para Léopold Sédar Senghor
Eles vieram essa noite em que o
tam
tam
rolava de
ritmo
em ritmo
o frenesi
dos olhos
o frenesi das mãos
o frenesi
dos pés das estátuas
DEPOIS
desde quantos de MIM MIM MIM
estão mortos
desde que eles vieram essa noite em que o
tam
tam
rolava de
ritmo
em ritmo
o frenesi
dos olhos
o frenesi
das mãos
o frenesi
dos pés das estátuas
HÁ NOITES
Para Alejo Carpentier
Há noites sem nome
há noites sem lua
em que até a asfixia
úmida
me traz
o acre odor de sangue
jorrando
de qualquer trompete tocada
Noites sem nome
noites sem lua
o sofrimento que me habita
me oprime
o sofrimento que me habita
me sufoca
Noites sem nome
noites sem lua
em que eu gostaria
de poder não mais duvidar
tanto me obceca esse desgosto
uma necessidade de evasão
Sem nome
sem lua
sem lua
sem nome
noites sem lua
sem nome sem nome
em que o desgosto se ancora em mim
tão profundamente quanto um belo punhal malaio
SHINE
Para Louis Armstrong
Com os outros
dos arredores
com outros
alguns raros
tenho no topo da minha caixa
até agora guardada
a ancestral fé cônica
E a arrogância automática
das máscaras
das máscaras de lima viva
que nunca jamais conseguiram retirar
de um passado mais horrível
de pé nos quatro cantos de minha vida
E meu rosto brilha nos horrores do passado
e meu riso assustador é feito para afastar o espectro dos galgos perseguindo o abandonado
e minha voz que por eles canta
é doce para encantar
a alma triste de sua por-
no-
gra-
fia
E vela meu coração
e meu sonho que se nutre do barulho de sua
de-
ge
ne
rescência
é mais forte do que seus clubes de imundícies
brandidas
SAVOIR-VIVRE
Para Etienne Zabulon
Eles não bocejam na minha casa
como bocejam na casa deles
com a mão sobre a boca
Quero bocejar tra-la-lás
o corpo recurvado
nos perfumes que atormentam a vida
eu me torno
um nariz de cachorro de inverno
do seu sol que não poderia nem mesmo aquecer
a água de coco que fazia gluglu em meu ventre ao acordar
Deixe-me bocejar
a mão
lá
sobre o coração
obcecado por tudo
que acabei de dar
as costas em um dia
Grande Leon Damas. Salve a pretitude, viva o ser preto, o futuro!