Apresentação e tradução de Floriano Martins
No início dos anos 1940, as Antilhas alcançam relevante momento no que diz respeito à singular afirmação de sua cultura, concentrando Surrealismo e a perspectiva de proposição de novos rumos pertinentes ao ambiente racial. Convulsão política, a descoberta do Surrealismo, a criação da revista Tropiques, a incondicional e revolucionária defesa de estabelecimento de uma identidade antilhana, são fatores que resultam na união de forças da parte de artistas e intelectuais dessa região do continente, onde se destacam personagens como Aimé Césaire, Leon-Gontran Damas (ambos, com a cumplicidade de Léopold Sédar Senghor, já em 1934, haviam criado a revista L’Étudiant noir) e Suzanne Césaire, que logo viria a se casar com Aimé e ela mesma uma notável referência crítica dessa época, graças a seus ensaios posteriormente recolhidos em um livro fundamental: Le grand camouflage. Em uma passagem do livro ela observa que “longe de contradizer, ou mitigar, ou derivar nosso sentimento revolucionário da vida, o surrealismo o respalda. Nutre em nós uma forte impaciência, sustentando sem parar o exército massivo das negações”. Em outra página afirma que a atividade total do surrealismo é “a única que pode libertar o homem revelando-lhe o próprio inconsciente, uma entre aquelas que ajudarão a libertar os povos iluminando os mitos cegos que os trouxeram até aqui”. A estudiosa Laurine Rousselet, em um iluminador e raro ensaio escrito sobre Suzanne Césaire, detalha a singularidade da influência do Surrealismo nas Antilhas. Diz ela:
Expressão da esperança, o movimento literário e artístico alentará, portanto, o patrimônio cultural dos povos caribenhos com a ruptura e a transgressão da linguagem. No artigo “1943: Le surréalisme et nous”, acrescenta a autora: “Em nenhum instante durante esses duros anos de domínio de Vichy se transferiu daqui a imagem da liberdade, e isto o devemos ao surrealismo”. Será no momento de burlar a censura quando os animadores de Tropiques chegarão de um modo natural a um novo método literário-estético. A obra Les armes miraculeuses, de Aimé Césaire, é mostra dessa consideração. Apresenta-se, com sua língua opaca,de imagens magníficas, como uma das mais difíceis do poeta; do surrealismo adota a polissemia (prelúdio da poética do diverso, do pensamento plural) para enganar a censura nesse duplo tempo de ocupação, colonial e vichysta, da ilha de Martinica.
Notas:
1- Le grand camouflage. Paris: Seuil, 2009.
2- Laurine Rousselet (França, 1974). “Suzanne Césaire, odisseia martiniquera”. Agulha Revista de Cultura # 13. Fase II. Fortaleza, novembro de 2015. Os anos 1940-1944 ficaram conhecidos nas Antilhas como “regime de Vichy”, período sombrio em que a França ⎼ da qual eram colônias os países antilhanos ⎼ esteve sob a influência nazista.
# Este fragmento integra o livro Um novo continente – Poesia e Surrealismo na América, de Floriano Martins (Fortaleza: ARC Edições, 2016).
PROFECIA
lá onde a aventura guarda os olhos claros
lá onde as mulheres irradiam de linguagem
lá onde a morte é bela na mão como um pássaro estação de leite
lá onde o subterrâneo colhe de sua própria genuflexão um luxo de pupilas mais violento que lagartas
lá onde a maravilha ágil faz flecha e fogo de toda madeira
lá onde a noite vigorosa sangra uma velocidade de puros vegetais
lá onde as abelhas das estrelas picam o céu de colméia mais ardente que a noite
lá onde o barulho de meus saltos enche o espaço ergue às avessas a face do tempo
lá onde o arco-íris de minha palavra está carregado de unir o amanhã à esperança e o infante à rainha,
por ter injuriado meus mestres mordido os soldados do sultão
por ter gemido no deserto
por ter gritado para meus guardiões
por ter suplicado aos chacais e às hienas pastores de caravanas
eu olho
a fumaça se precipita em cavalo selvagem sobre o fundo da cena embainha um instante a lava de sua frágil cauda de pavão depois se rasgando a camisa abre de uma vez o peito e eu a olho em ilhas britânicas em ilhotas em rochedos despedaçados a dissolver pouco a pouco no mar lúcido do ar
onde se banham proféticos
minha garganta
minha revolta
meu nome.
[Les armes miraculeuses, 1946]
AS ARMAS MIRACULOSAS
O grande golpe de machete do prazer vermelho em plena fronte havia sangue e essa árvore que se chama flamboyant e que não merece nunca mais esse nome que as vigílias de ciclone e de vilas devastadas o novo sangue a razão vermelha todas as palavras de todas as línguas que significam morrer de sede e só quando morrer tinha o gosto do pão e a terra e o mar um gosto de ancestral e esse pássaro que me grita para não me entregar e a paciência dos urros a cada desvio da minha língua
a mais bela arca e que é um jato de sangue
a mais bela arca e que é um círculo lilás
a mais bela arca e que se chama a noite
e a beleza anarquista de teus braços postos em cruz
e a beleza eucarística e que flameja com teu sexo em cujo nome eu saudava a barragem de meus lábios violentos
havia a beleza dos minutos que são jóias no abatimento do bazar da crueldade o sol dos minutos e seu lindo focinho de lobo que a fome faz sair do bosque a cruz-vermelha dos minutos que são as moréias em marcha rumo às piscinas e as estações e as fragilidades imensas do mar que é um pássaro louco pregado morto sobre a porta das terras cocheiras havia até o medo tais como a narrativa de julho dos sapos da esperança e do desespero podados de astros acima das águas lá onde a fusão dos dias que assegura o bórax dá razão às lamparinas gestantes as fornicações da relva a não contemplar sem precaução as copulações da água refletidas pelo espelho dos magos as feras marinhas a se pegar no vão do prazer os assaltos de covables todas as portinholas fumantes para festejar o nascimento do herdeiro macho em instância paralela com a aparição das pradarias siderais no flanco da bolsa de vulcões de agaves de destroços de silêncio o grande parque mudo com engrandecimento siluriano de jogos mudos de aflições imperdoáveis da carne de batalha segundo a dosagem sempre a refazer germes a se destruir
escolopêndrio escolopêndrio
até à pálpebra das dunas sobre as cidades proibidas tocadas pela cólera de Deus
escolopêndrio escolopêndrio
até a derrocada crepitante e grave que lança as cidades anãs à cabeça dos cavalos mais fogosos quando em plena areia elas levantam
seu rastelo sobre as forças desconhecidas do dilúvio
escolopêndrio escolopêndrio
crista crista cimácio quebra-se quebra-se em sabre angra peliça em vila
adormecido sobre suas pernas de estacas e safenas d’água cansada
dentro de um instante haverá a derrota dos silos farejados de perto
o acaso face de poço de condottiere a cavalo com por armadura as poças artesianas e as pequenas colheres das estradas libertinas
face de vento
face uterina e lêmure com dedos escavados nas moedas e na nomenclatura química
e a carne revirará suas grandes folhas bananeiras que o vento des bojos fora das estrelas que assinalam a marcha em recuadas das feridas da noite rumo aos desertos da infância fingirá ler
num instante haverá o sangue derramado onde os vaga-lumes puxam as catenárias das lâmpadas elétricas para a celebração das compitais
e as infantilidades do alfabeto dos espasmos que faz as grandes ramagens da heresia ou da conivência
haverá o desinteresse dos paquetes do silêncio que sulcar
dia e noite as cataratas da catástrofe nos arredores das têmporas eruditas em transumância
e o mar recolherá suas pequenas pálpebras de falcão e tu tratarás de captar o momento o grande feudatário percorrerá seu feudo à velocidade de ouro fino do desejo sobre as estradas de neurônios olhe bem a pequena ave se ela não devorou a estola o grande rei aturdido na sala cheia de história adorará suas mãos bem nítidas suas mãos erguidas no canto do desastre então o mar se recolherá a seus pequenos sapatos toma bastante cuidado ao cantar para não apagar a moral que é a moeda obsidional das cidades privadas de água e de sono então o mar se porá à mesa bem docemente e os pássaros cantarão bem docemente nas básculas do sal a canção de ninar congolesa que os mercenários me desensinaram mas que o mar muito piedoso das caixas cranianas conserva sobre seus folhetos rituais
escolopêndrio escolopêndrio
até que os cavalgados corram a esmo nos prados salgados de abismos com nas orelhas ricas de pré-história o burburinho humano
escolopêndrio escolopêndrio
enquanto não tivermos atingido a pedra sem dialeto a folha sem torreão a água frágil sem fêmur o peritônio seroso das noites de fonte
[Les armes miraculeuses, 1946]
MITO
As sereias recolhe seus bigodes inoperantes as luzes amarelas e vermelhas da tarde e da noite fazem em pleno dia uma joeira de estrelas comestíveis. Esperando não se sabem quais cavalos capados e quais safras as fazendas não queimam. Ficamos extremamente surpresos de não ver as feras trabalhadoras do fogo e do veludo nas pradarias de colocásias das paredes e dos tetos, mas já crepitam as secretas ternuras idealmente situadas no coração das palavras com cabelos de meteoros. Des dos sob a chuva poupam o sumo da paisagem. Mais longe a própria paisagem em esconde-esconde consigo mesma num jogo frágil de corredores de portas batentes e de armarias. É pois meu saque – nada de cão, nada de avó. Fixamente, a hora serpente de frisos de quadros mas no alto dominando os antigos o pavor rubro-azul da Ausência e nossos olhos fascinados pela pensamento de uma boneca vingadora com asas de corvo. Os homens? Numa despedida terrível. As mulheres? Sem laço. Sem aliança. Remadores? Choferes? Não assobiará a fera. Que os arranha-céus perfilem em contratempo de peixe a genealogia falível do espaço. Seus olhos povoados de mélias azedarac os negros sem pista sem pano vos fazem com a mão e com a espera o gesto lantana da cumplicidade. Onde cairá o veredito? Uma terrível desocupação resiste na cidade e ameaça. Enquanto a terra primogenitura boceja tepidamente às matrizes solenes dos convolvuláceas.
[Les armes miraculeuses, 1946]
MÁGICO
com um naco de céu sobre um quinhão de terra
vocês feras que assobiam sobre o rosto desta morta
vocês livres avencas por entre as rochas assassinas
no extremo da ilha por entre les conchas muito vastas para seu destino
quando o meiodia cola seus timbres ruins sobre as dobras tempestuosas da loba
fora do quadro de ciência nula
e a boca de paredes do ninho sufeta das ilhas engolidas como um tostão
com um naco de céu sobre um quinhão de terra
profeta das ilhas esquecidas como um tostão
sem sono sem vigília sem dedo sem palancre
quando o tornado passa roedor do pão das cabanas
vocês feras que assobiam sobre o rosto dessa morta
a bela onça da luxúria e o caracol operculado
mole deslizamento dos grãos do verão que fomos
belas carnes a transpassar com o tridente das araras
quando as estrelas chanceleiras de cinco galhos
trevos do céu como gotas de leite derramado
reajustam um deus negro mal nascido de seu trovão
[Cadastre, 1961]
FILHO DO TROVÃO
E sem que ela tenha se dignado a seduzir os carcereiros
em seu bustiê se descamou um buquê de pássaros-moscas
em suas orelhas germinaram brotos de atóis
ela me fala uma língua tão doce que de início não compreendo mas ao longo adivinho que ela me afirma que a primavera chegou à contracorrente
que toda sede está estancada que o outono nos está conciliado que as estrelas na rua floriram em pleno meio-dia e muito baixo suspendem seus frutos
[Cadastre, 1961]