Xavier Forneret (França, 1809-1884)

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Carta e tradução de Floriano Martins [1]

Fracaleza Drinks, julho de 2014.
Querido Eclair

Antes de tudo tenho aqui muito a agradecer-te pela descoberta de Xavier Forneret. Narrador, dramaturgo e poeta nascido e falecido na francesa Beaune (1809-1884), a exemplo de muitos autores situados como românticos, foi absurdamente tocado por um quase completo obscurantismo, não fosse pela lembrança de André Breton ao incluí-lo em sua Antologia do humor negro.

Se recordas bem, na revista Minotaure # 10 (1937), lemos as palavras de Breton:

Não hesitamos em sustentar que há um caso Forneret cujo enigma persistente justificaria hoje pesquisas pacientes e sistemáticas: donde vem que o autor de umas vinte obras tão singulares tenha passado quase completamente despercebido; como se explica a extrema desigualdade de sua produção, onde o achado mais autêntico se emparelha com a pior repetição, onde o sublime o disputa com o ingênuo, de sorte que a originalidade constante da expressão não cessa de descobrir frequentemente a indigência do pensamento; quem foi esse homem de quem todo o comportamento exterior parece ter tido por objeto atrair a atenção da multidão, que sua maneira de escrever não podia deixar de lhe alienar, esse homem assaz orgulhoso para mandar passar nos jornais esse anúncio de um dos seus livros: “A nova obra de Xavier Forneret só será entregue às pessoas que enviarem seus nomes ao tipógrafo, Sr. Duverger, rua de Verneuil, e após exame de seus pedidos pelo autor”, e assaz humilde para, ao fim de várias de suas obras, desculpar-se de sua incapacidade e solicitar a indulgência do público? Em diversos aspectos essa atitude não deixa de apresentar analogias impressionantes com a que adotará mais tarde Raymond Roussel. O estilo de Forneret é, além do mais, daqueles que fazem pressentir Lautréamont assim como seu repertório de imagens audaciosas e totalmente novas já anuncia Saint-Pol-Roux. Um poema como “Jeux de Mère et d’Enfant” [Brincadeiras de Mãe e Filho], em Vapeurs ni vers ni prose [Vapores nem verso nem prosa], antecipa-se com uma ingenuidade desconcertante sobre a ilustração clínica das teorias psicanalíticas de hoje.

Os erros e acertos deste homem que circulava com desabusada soltura entre a ideia de um sonho pensador, o humor negro e a evocação sarcástica a personagens da história com os quais estava em franco desacordo, mesclam-se aos acertos e erros de sua própria vida, pois nessa relação entre escrito e escândalo podemos situar a singularidade de Forneret, tanto quanto a paixão que tenha despertado em Breton.

É possível vê-lo como um dândi, percorrendo sua biografia, educado ainda em criança em uma amplitude de conhecimentos, que lhe permitiria tanto polemizar na política quanto flanar pela execução e composição musical – orgulhava-se de seu autêntico stradivarius –, em nenhuma de suas atividades deixando de ser, em essência, um excêntrico, um transbordante, o que certamente o levou também a ser um descuidado ou, como diversas vezes foi acusado, um burguês conformista. De origem rica, condição dada graças à cultura de vinhedos por seu pai, Forneret não hesitou em comprometer tal fortuna ao custear não apenas a edição de seus livros como a produção de suas peças teatrais. Mais de sua biografia nos leva ao coração de suas excentricidades: da capa de veludo e do chapéu de Necromante com que circulava pelas ruas de Beaune até a residência em uma torre gótica onde se dizia que Forneret dormia em um caixão estofado.

Extravagâncias que se encaixavam à perfeição na época, o fato, querido Eclair, é que assim como em sua vida também encontramos traços, na obra de Forneret, que tornam quando menos intrigante uma fertilidade estética invulgar, em especial pela soma de referências e ousadias, muito embora, como recorda Breton, tenha nesse caldeirão consumado algumas receitas aquém de quaisquer valores poéticos. Bem lembramos, em nossas conversas, que a certa altura, disse Breton que Forneret era “surrealista nas máximas”, e o confirma Fernand Cheffiol-Debillemont ao destacar que ele tinha “o dom do atalho”. Somando as duas leituras, creio que concordamos que ao nosso poeta lhe tocou ser, de algum modo, um dos prenunciadores da poesia moderna.

Um prenúncio dado pelo excesso e a desordem com que sua obra se expôs. Recordemos antes que a montagem de algumas de suas peças – dramas e comédias burlescas –, assim como a publicação de alguns de seus provocantes livros, fertilizaram uma rejeição de ordem diversa: público, crítica, pares. No entanto, vemos ali ressaltados em um grau arrítmico voraz, um conjunto de experiências que regeriam o espectro positivo de uma singularidade na voz de Xavier Forneret: dos recursos linguísticos à tipologia, da exploração de aspectos como o inconsciente, o imaginário, o mundo onírico à picardia ao descarnar a época em que vivia, aí incluindo a si próprio. Forneret bem poderia ser indiciado como um dos responsáveis pela modernidade, não fosse o fato de que sua ação criminal passou quase por completo despercebida.

Autores de maior e menor importância, neste mesmo período, foram e seguem sendo lembrados, referidos, diluídos. Com obra tão oscilante quanto a de Forneret, recordando aqui a observação de Breton. A memória carece de explicação. Ninguém sabe ao certo o que garante a perenidade ou o ostracismo dos fatos aos olhos da memória. Em 1992, o cineasta Shimako Sato dirigiu um filme intitulado Tale of a vampire, onde a certa altura, cena em uma biblioteca onde alguém folheia livro de um impensável Xavier Forneret, a troco de nada surge a referência a um poema deste autor em que um homem faminto come a própria mão. Vamos ler aqui o poema:

UM POBRE VERGONHOSO

Ele a tirou num triz
De seu bolso furado,
e a pôs sob seu nariz;
E, após tê-la bem olhado,

disse: “Ó, Infeliz!”
 
Ele a soprou então
com seus úmidos lábios;
Quase sentira uma apreensão
De um terrível adágio
Que veio tomá-lo no coração.
 
Ele a molhou
Com uma lágrima gelada
Que derreteu por azar;
Sua câmara estava vazada
Muito mais que um bazar.
 
Ele a esfregou
Sem torná-la esquentada,
Tão pouco ela a sentia;
Pois, pelo frio pinçada,
Ela se esvaía.
 
Ele a pesou
Como se pesa uma ideia,
Apoiando-a no ar pobre.
Depois a mensurou
Com fio de cobre.
 
Ele a tocou
Com seu lábio enrugado.
Com um pavor infame
Ela soltou esse brado:
Adeus, beija-me!
 
Ele a beijou,
E, após tê-la cruzado
Sobre o relógio corporal,
Que tocava, mal ajustado,
Um surdo acorde musical.
 
Ele a apalpou
Com uma mão determinada
A fazê-la morrer.
Sim, é uma bocada
que pode nos satisfazer.
 
Ele a dobrou,
Ele a quebrou,
Ele a pousou,
Ele a cortou;
Ele a lavou,
Ele a carregou,
Ele a grelhou,
Ele a devorou.

O fato é que Forneret suscitou a exploração da excentricidade em que converteu sua própria vida. Eu penso, Eclair, que nele os abismos que em muitos separam sonho e vigília, realidade a imaginário, se encaixam de tal modo que o delírio aparente de sua criação talvez seja uma pista falsa. Veja bem, ao escrever este intrigante texto que aqui traduzes com Odúlia Capelo, Rien, ele convoca Byron e Young que acabam por, juntos, louvar, da forma mais sarcástica possível, o gênio de Voltaire. Logo acrescenta ali, a título de Alguma coisa, um par de cartas que aludem a uma indefinição editorial de Rien. Por último, completando a trilogia em que consiste o presente livro, lemos uma espécie de visualização sonora do que o título aponta como um “diamante da relva”. O que temos aqui, afinal?

Eu creio, como Lautréamont e Breton, na voragem do inesperado. Quando penso em Surrealismo o primeiro arrepio que me vem à pele é o que me leva a um mergulho no inesperado, muito mais do que a eventual matriz de um cansaço ante o previsível. Talvez Forneret tenha sido um dândi, não mais do que isto, porém não importa. Tampouco podemos investigar acerca de parte de sua obra dada como perdida. Em 2013 em Paris, pela Presses du Reel, foram editados dois amplos volumes com sua obra completa. Teatro, poesia, música, récita, aforismos, contos, romance, vida cotidiana. Assim é apresentada pela editora sua fornalha criativa.

Forneret me parece, querido Eclair, muito mais o pensador de sonhos, do que um defensor do sonho pensador. Se fez da polêmica ou da excentricidade a própria vida, é porque não há outra razão de viver senão duvidar da existência. Isto nos leva a uma máxima que de alguma forma se aparenta com a imagem de um faminto que devora a própria mão: a de um homem que se alimenta da própria existência.

Por último, entendo que esses vislumbres de sombras, essas descobertas de enredos entranhados em ângulos invisíveis da história, além do gozo de libertá-los e de nos saciar a leitura, trazem consigo a função primordial de constantemente reescrever a história. Afinal, não é outra coisa o que faz a memória.

Obrigado, querido.

Abraxas


[1] Prefácio do livro “Nada, seguido de Alguma coisa”, de Xavier Forneret, tradução de Eclair Antonio Almeida Filho. Santa Catarina: Edições Nephelibata, 2015.

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