5 Poemas de Daniel Arella (Venezuela, 1988)

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Curadoria e tradução de Gladys Mendía

Daniel Arella (Caracas, 2 de julho de 1988). Poeta, ensaísta, narrador, rapper de trap e enxadrista. Licenciado em Literatura Hispano-Americana e Venezuelana; mestre em Filosofia pela Universidade dos Andes, com uma tese sobre o raio de Heráclito na poesia de Friedrich Hölderlin. Publicou os livros de poesia: No Fundo da Transparência (Los caminos de Altair, Venezuela, 2009); O Louco de Ejido (Plaquete, LP5 Editora, Chile, 2013); O Andrógino Ébrio no Haitón (Nuevos Clásicos, Bolívia, 2017). Dedica-se à edição, crítica literária e ensino. Autor de várias antologias, incluindo as obras completas do poeta venezuelano Gelindo Casasola, Espaços (el perro y la rana, 2014); Os Relatos Pioneiros da Ficção Científica Latino-Americana (el perro y la rana, 2015, disponível na internet; 2019, primeira edição impressa). Em 2015, ganhou o XIX Prêmio Latino-Americano de Poesia no Concurso Ciro Mendía (Caldas, Antioquia, Colômbia), com o livro de poemas Anatomia do Grito. É editor da revista de gêneros fantásticos IO de Cali, bem como membro do conselho editorial da revista POESÍA da Universidade de Carabobo. Trabalhou como oficineiro de literatura de 2010 a 2016 na Casa Nacional de las Letras Andrés Bello em espaços psiquiátricos e penitenciários; ministra oficinas online de heteronímia literária, poesia mística, filosofia e budismo para o público em geral.


A CURA

Eu previ as lágrimas cozidas
na pele do espaço que se torna tempo
para que o beijo entre sem dor
no ventre do rio

Masturbei a máscara com olhos primeiros
com olhos anteriores ao primeiro homem morto antes do amanhecer
essa máscara de Deus que eu coloco
quando quero chorar sem que me vejas

Dei asas à cabeça doente
para afugentar os pássaros carniceiros
daquela idade inocente armada de silêncio

E assim você acorda
E eu dobro a cura para você
para que morra completa
no lugar que abri quando estava vivo


PÉS DE ÁGUA

a Anú.

Meu desangrar é confiar na lâmina da palavra (palavra)
precisava ver-te crescer para dentro como raiz de relâmpago negro
terra viva vitral escuro triangulava a dor em meu peito
dormência escondida saindo do sorriso vitorioso
procurando minha mão seus pés são a água
Pés de água
farei deste mundo nosso rio
farei desta sede o mar, mesmo que anoiteça
na noite trabalho melhor com a espuma
é noite aquela luz quando a amansas
é noite aquela luz cântico invencível
sou vencido na glória meus versos abençoados
é a glória ser escuro e ser teu
é a glória vencer a escuridão vencido


O PAÍS ONDE TUDO É PERMITIDO

a Wini Ravelo

Te encontrei numa manhã de fevereiro vendendo rosas e postais numa praça queimada
Você me disse que me esperava com a boca quebrada cheia de esporas
dormindo dentro do ventre de um cavalo negro
Iríamos para o país de Sophie Podolski
na santidade de nossa imagem
do paraíso ágil flutuando como nave de esporos
Nossos caprichos doentios seriam permitidos

“Era uma coroa, não era?” –
Sobre a sua cabeça encharcada naquela época
sozinha do ar no clarão superior da Aurora
Aquela que me perverte nas raízes sustentadas
sobre os passos do trovão Ninfa do Eco
naquele espaço onde habito
vive tua alma sozinha comendo milho das minhas mãos
sussurrando-me o mantra do húmus a Noite dos Arpejos Dourados inteira
até adormecer como uma criança no teu sangue
dentro do ventre de um cavalo negro
na santidade de nossa imagem.


ROSTO DE NINGUÉM

Escrever poemas é mostrar o rosto
mas um poema ainda não é um rosto
E se é verdade que o louco é traído pelo rosto
o poema é traído pelo rosto
e o louco é traído pelo poema
e o poema trai todos eles
O poema é rosto ou rosto, não há acaso, é isso
Cada ruga desse rosto é um verso desse poema
Cada cicatriz desse rosto é um verso desse poema
Cada marca de dor desse rosto é um verso desse poema
Cada corte desse rosto é um verso deste poema
O nada não é a resignação perfeita
O nada é a perfeita responsabilidade
Nada de cinzas brancas
nuvem de amor sem solidão
perdida no mel
é a luz anterior à luz
não é ausência
uma colmeia de relâmpagos
um céu feito de terra
é o espírito que se fez corpo e memória para te esperar


CANÇÃO DA VIDA ANÔNIMA

a Pedro Varguillas

Há dias, irmão,
em que o nada espreita criminalmente
e são dias
como despenhadeiros
como se fosse um burro de sóis
um mamalogos em bruto

e a gente
não resta outra coisa senão subir a montanha
com a boca
com a boca bem aberta para o cume

e os dentes cerrados
firme
firme contra as pedras
pra ver se é verdade que existe algo além do grito
que não seja o silêncio

Há dias, irmão,
em que o nada espreita criminalmente
e são dias
como se o sangue
tivesse pegado Parkinson de repente
e a gente
não resta outra coisa
senão fumar os órgãos numa lata
com os mendigos do tempo
pra ver se é verdade que existe algo maior que a miséria

Há dias, irmão,
em que o nada espreita criminalmente
e alguém está atrás do mundo
atrás de tudo
como no terreno do mar
dando querosene aos anjos
pra ver se é verdade que algo dói a Deus

Há dias, irmão,
como hoje
em que o nada
é um crime perfeito.

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