3 Poemas de Enrique Lihn (Chile, 1929-1988)

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Curadoria e tradução (textos críticos) de Floriano Martins
Tradução dos poemas de Elys Regina Zils

A poesia sem poemas é geralmente obra de escreventes que redigem versos por toneladas. Tenho a impressão de que ali por volta de 1960 havia um bom número destes prolíficos no Chile: um deles escreveu um livro tão longo como a Historia, de Francisco Encina, e com propósitos não muito diferentes, de enciclopedista de inventário. Estes líricos se esforçavam em vão para evitar o naufrágio, com os olhos postos no farol do Canto general. Também Pablo de Rokha havia dado um exemplo de extensão. Parece-me que os imitadores equivocados imitavam obras às quais é possível fazer alguns reparos, ao menos relativos ao mito da transfiguração da epopeia clássica ou renascentista, ou à obsessão da poesia latino-americana de produzir seu próprio Walt Whitman.

Tratei de salvar-me dessas facilidades ou de evitar essas dificuldades. Me propus um tipo de rigor, que preferiria chamar o sentido da organização de um texto, tendo em mente, a cada caso, o projeto definido de um poema em particular. Desde essa perspectiva, não encontrei nenhuma razão válida para desterrar a narratividade, ou para prescindir de certos recursos dialógicos, próprios do gênero dramático, nem para frustrar certas previsões gramaticais.

[…]

O conceito de irrealismo me cria uma resistência, um bloqueio. Eu chamaria irrealista a um grande número de escritores realistas, porque ignoram a realidade da literatura, caindo assim no irrealismo de confundir suas fantasias pessoais e coletivas com a realidade; são esses os escritores que fazem – porém ignorando-o – literatura no sentido pejorativo da palavra. Creio na realidade da literatura, não certamente como algo dado, mas sim na maneira de encontrar um sentido para as coisas, segundo uma técnica ou procedimentos exclusivos que constituem a especificidade do discurso literário. Porém tampouco sei em que momento se pode falar de um espaço puramente verbal no qual se recolham as virtualidades da experiência.

[…]

Existe o critério de autossuficiência relativa do fenômeno literário ao qual me subscrevo. A literatura que não se encerra em uma reflexão excludente sobre si mesma ou, em caso contrário, em um inapreensivo exercício das verossimilhanças admitidas, tenta organizar uma zona onde se pode produzir a experimentação: essa zona que se limita com o que estou pensando aqui sob a espécie da realidade.

Eu queria resgatar um conceito da literatura que não exclui os dados da experiência. Não se trata da presunção realista de uma literatura que seria o reflexo artístico da realidade objetiva, mas creio que o enrarecimento da literaridade leva a uma literatura ou a uma meta-literatura que, sem ganância alguma, se engolfa em si mesmo, dando assim conta negativamente de uma situação. O que estou tentando fazer, ao menos, por muito que pareça irrealista, é o produto de um certo enfrentamento com a situação.

ENRIQUE LIHN / Trechos de Conversaciones con Enrique Lihn, extenso diálogo com Pedro Lastra, recolhido em livro homônimo. Xalapa, 1980.


Primeira notícia sobre um livro de amor de Enrique Lihn[1]

Por Pedro Lastra


Al bello aparecer de este lucero é, em um certo sentido, um primeiro livro de Enrique Lihn. Afirmação desconcertante para seus leitores da América Hispânica que leram muitos outros do autor em seus lugares próprios, mas na qual devo insistir porque este livro é o primeiro nas condições atuais: as do ingresso deste poeta no âmbito hispano-falante dos Estados Unidos, quase outro país cujas proximidades e diferenças são sem dúvida algo mais do que a soma ou o resto das proximidades e diferenças que tornam possível o diálogo de um espaço e de um texto, em um lugar e em um tempo específicos.

Há também outras razões para reduzir a afirmação inicial. Deixa intocada esta evidência: Enrique Lihn é conhecido nos Estados Unidos através de numerosas traduções em revistas e livros, o último dos quais – e o mais abarcador – é The dark room and other poems, editado por New Directions em 1978. Mas não é esse o tipo de difusão ao qual me refiro no parágrafo anterior.

Em 1966, Enrique Lihn obteve o prêmio Casa das Américas por Poesía de paso, um livro escrito quando era bolsista da UNESCO. Em uma ordem parecida de acasos favoráveis, uma nova estadia do poeta de passagem por Nova York como bolsista da Guggenheim Foundation coincidiu com a edição antológica da New Directions. Nesse ano escreve A partir de Manhattan, um volume com o qual a Editorial Ganymedes se associou no ano seguinte à celebração do cinquentenário de Enrique Lihn. Os testemunhos deste sucesso do exílio interior foram recolhidos em Derechos de autor (1981), um livro manufaturado de consideráveis proporções, simultâneo em sua aparição e desaparição (a tiragem de oitenta exemplares estava destinada aos amigos literários de Enrique Lihn).

Quanto às antologias, não é fácil nomear uma que omita a presença de Enrique Lihn: os leitores avisados da poesia hispano-americana teriam um fundado direito a dissentir de tal improvável omissão. E entre as compilações significativas em outras línguas deve-se mencionar aqui 16 poetas hispanoamericanos, publicada em Atenas por Rigas Kappatos (1980).

Como narrador, o contista de Agua de arroz (1964) retornou à prosa na década passada com novelas decididamente experimentais, nas quais a linguagem representa a si mesma distribuindo os róis que a tradição atribuiu aos personagens e aos acontecimentos. Define-os bem o título da última: El arte de la palabra (1980).

Como ensaísta sobre temas literários não somente interessam os artigos e notas que Enrique Lihn publica com frequência na América Hispânica e nos Estados Unidos. Considero legítimo incorporar nesta epígrafe o conversador e remeter a um livro que o confirma: minhas Conversaciones con Enrique Lihn (1980).

A esquemática figuração do afazer de Enrique Lihn, que tentei esboçar para os leitores de Ediciones del Norte, deve ser completada com outras observações. Elas me são sugeridas pela própria disposição do diário de poemas que é Al bello aparecer de este lucero. Os dias intercambiáveis que o conformam induzem-me à anotação marginal, assistemática. Um resumo da ideia motivada pelo diário: leitura em movimento suscitada por um conjunto de textos que neste caso não poderá deter a materialidade do livro que o contém.

Enrique Lihn começou a familiarizar-se com estes procedimentos desde Poesía de paso, diário de viagem ou registro de situações que, ao verbalizar-se como respostas fragmentárias e imediatas aos estímulos e provocações do desconhecido abriam o espaço de um paradoxal reconhecimento: o que alcança um olhar oblíquo, distanciado e alheio, para o qual a percepção de um lugar produz a memória do mesmo. Uma primeira volta do parafuso, na qual se revela então uma diferença: as fascinações do viajante encobrem as tentações de uma instalação impossível fundada em um saber negado de antemão. Porque o poeta de passagem não conhecerá nunca os lugares de que fala: limitar-se-á a percorrê-los. Suas andanças dão conta bem mais de um certo desenraizar-se, que se estende à própria existência sentida como uma viagem (E.L., Conversaciones).

A viagem é uma mudança de cenário que corrobora a persistência do sujeito que viaja, agrega Enrique Lihn. E assim o sentimos nos variados espaços que seus livros parecem escrever, porém nos quais surpreendemos de imediato a um sujeito que é escrito por eles, circunstância insinuada nos títulos ao determinar as menções espaciais com certas marcas – ambíguas – de ruptura da univocidade: Escrito en Cuba (1969); París, situación irregular (1977); A partir de Manhattan (1979); Estación de los desamparados (1982).

Creio que París, situación irregular ilustra com plenitude a eficácia destes modos escriturais de Enrique Lihn e as projeções obtidas. Carmen Foxley descreveu em sua oportunidade essa escritura em um estudo exemplar, modestamente intitulado “Prólogo”, e ao qual deverá regressar sem demora o leitor cuidadoso. Porque mudando o que tenha que mudar (atitude que esse tipo de leitor sempre está disposto a assumir), advertirá que o desenho do diário de viagem, desenhado com tanta precisão por Carmen Foxley em sua leitura daquele livro, traça também algumas linhas aplicáveis ao desenho deste diário de poemas. Outro desenho, desde já, porém de um sujeito igualmente em situação irregular, perto do assunto que gera o discurso de Al bello aparecer de este lucero.

Resumo os avatares da escritura de Enrique Lihn nos últimos vinte anos, tomando lá detrás a corrida.

La pieza oscura (1963) explora centralmente a relação entre a memória e a linguagem poética, algo assim como uma mesma atividade que se desenvolve em planos homólogos (E.L., Conversaciones). Em particular o poema que dá título ao livro e os da série que se desdobra ali como uma constelação, manifestam uma impossibilidade do sujeito reminiscente ou evocador em busca de um tempo perdido: a infância somente existe graças à memória em um presente que é o texto. Essa viagem é ilusória: não há mais infância nem mais tempo passado do que aqueles que produz a memória na linguagem. Comprovação sombria, mas que tem sua contrapartida no mesmo caráter ilusório do resgate: uma forma do desejo, um desquite contra a ominosidade do real.

De modo semelhante, ou melhor, homólogo, se constitui o viajante intrépido que percorre por Poesía de paso e os outros livros (cenários) desse gênero. Seus deslocamentos se resolvem como desencontros que originam um discurso ante-utópico, corrosivo, crítico de si mesmo e do contorno que registra sem a menor complacência.

Uma imagem une, para mim, a figura desse viajante com a do personagem que fala em La musiquilla de las pobres esferas (1969): a morte dos coribantes e o eco – agora somente um ruído – da música a cujo som realizavam seus movimentos descompostos e extraordinários. Esse ruído é o sonsonete vácuo, a lira envilecida que Waldo Rojas sentiu fluir pela única e desvencilhada janela que acaso persiste da luminosa caverna de Blake (“Nota preliminar” a La musiquilla…).

Al bello aparecer de este lucero pode ser lido como um vigamento das várias direções percorridas por Enrique Lihn até chegar a este ponto. Mas como um vigamento não é uma soma, trata-se aqui de uma resultante singular e extrema a respeito de alguns procedimentos postos em prática nos livros mencionados, e não somente de poesia (tenha-se presente uma vez mais El arte de la palabra).

Recorrências e ressonâncias de diversas linguagens – prestigiosas e planas – sustentam a escritura de um emissor supostamente instalado em uma segurança. Este falante crê ou simula crer enquanto escreve sua paixão que isso e não outra coisa é a escritura. Dupla sedução: a de um referente (possível) que o atrai até à borda de um vazio que desejaria encher, e a de um distanciamento que o nega mediante o reenvio irônico à literatura. Daí o jogo de intertextualidades (o título do livro procede de um poema de Fernando de Herrera), ao qual não é alheia a obra anterior de Enrique Lihn: como um eco do verso uma jovem caiu, em outro mundo, a meus pés (de La musiquilla…) surge esta anotação em um poema presente: essa mesma jovem a quem amei / em silêncio há coisa de cem anos. De maneira parecida: Um grande amor, a pérola de seu bairro / rouba-lhe o coração alegremente / para com ela jogar bola (de La pieza oscura) prefigura ou recorda prospectivamente estes versos atuais: O coração partido em dois por uma mordida / palpitava melancolicamente por ti e alegre… Intertextualidades reflexivas.

Ao longo do livro, o sujeito que descreve este cortejo erótico compara sua experiência com a de outros sujeitos textuais (desde a poesia medieval até Neruda, passando por Sade e Masoch), sem advertir que estes sujeitos, anacronicamente, também poderiam reconhecer a sua em Al bello aparecer de este lucero. No círculo (descentrado) que é o ato literário encenado neste livro, o falante distancia a experiência própria remetendo-a a textos alheios que o devolvem a ela e o inscrevem na dilatada escritura da poesia amorosa. O leitor descobre que – como ocorre amiúde neste gênero – essa comunicação privada com uma destinatária única dissimulada no artifício das atribuições, citações e referências que se entrançam às vezes com o impropério, é, em última instância, a alegação de álibi consubstancial à arte da palavra:

Tudo está feito de palavras
não te assustes: são tropos: jactâncias de nada.
Por ti e não de ti está feito o poema.

*****

[1] Este ensaio apareceu pela primeira vez como prólogo do livro Al bello aparecer de este lucero (Ediciones del Norte. Hanover. New Hampshire. 1983), de Enrique Lihn. Posteriormente foi incluído em Relecturas hispanoamericanas (Editorial Universitaria. Santiago. 1987). O poeta Pedro Lastra (Chile, 1932) é também autor de Travel notes (1991) e Noticias del extranjero (1992). Tradução de Floriano Martins.


ESTAÇÃO FINAL

Esta será prevejo sua última imagem:
nossa despedida no poema na estação final.
Não sei por onde começar para não perder nada,
e as pessoas as coisas amontoadas aqui tem algo de
esmagador comparável aos restos que esfriam
frases inteiras ou adjetivos de uma pequena obra-prima
sobre a qual pesaria, até perdê-la, essa impaciência,
nosso cansaço minha desarticulação a ferocidade do egoísmo
por que quando meus pés começam a doer
prefiro a cama a qualquer outra coisa, incluindo
a poesia que esta noite tudo é você,
e, enquanto isso, não insista que um gorduchinho de quarenta anos
durma apoiado em seu ombro, para segurá-lo um pouco mais.
A estação tem muitas cenas como essas,
o rosto triste da revolução
que me sorri pelo seu
com uma espécie de máscara de folhas de tabaco
pequena obra-prima da noite você improvisa
uma moral uma paciência e até o que chama de seu amor,
nada poderia de tudo isso
brotar nesta terra quente devastada por furacões
por onde passa e repassa este mundo com seus pés,
e se acumulam os restos à espera de meus adjetivos,
obscenos vultos um mar de papéis, etc.,
algo, enfim, para desistir desse tipo de viagens.
Parece-me que cheguei à idade mais ingrata,
parece que me lembro do momento presente:
você não é a garota que eu conheci um ano atrás
nem a que partiu em circunstâncias que prefiro esquecer.
Pelo contrário, não fizemos amor?
Uma e mil vezes, dir-se-ia, e para o caso é o mesmo:
te substituíram assim como uma sombra apaga outra,
e sua virgindade: o cúmulo do absurdo
não te poupa agora de parecer exausta.
Na verdade, lembro que nos despedimos aqui,
mas não posso especificar, com este sonho, como aconteceu a despedida,
em que sentido suas mãos bagunçam meu cabelo
e eu arrasto sua bagagem uma caixa de lata
ou me insinuas que lhe dê um pulôver.
Aos olhos das pessoas que não distingo dos meus olhos
apenas para olhar para eles de uma espécie de vida após a morte
somos um casal um pouco desafiador
e acostumada a isso em sua Estação Final
um branco e uma negra
contra a qual, a qualquer momento, alguém lança um
sorriso estúpido
o começo de uma pedrada.
A cara triste da revolução
e eu tomo em minhas mãos de egoísta consumado
Tanto como as pálpebras me pesam os que sentam no chão
esperando por um ônibus até a hora do julgamento
em que o velho decrépito consegue se mover
e dispensá-los lentamente pelo interior da República.
Sua última imagem talvez com seus discos no cabelo,
essa falta de sentimentos profundos em que me encontro
semelhante à pobreza para a qual, por outro lado, você
não sente nada, ou melhor, uma despreocupada afinidade,
o riso de juntar alguns meios com seus alunos,
o espelho que se esconde embaixo do travesseiro para sonhar com quem quiser
e suas visitas à abandonada
que pelas dores do amor se enche de filhos.
Já não tenho idade para me suportar neste transe
nem os bolsos vazios nem a efusão sentimental são coisas do meu agrado,
até lendo meus próprios versos mais ou menos românticos bocejo
e minha mão ficaria dormente se eu tivesse que escrevê-los.
Quantos anos aqui, mas, de qualquer maneira, você é jovem:
“de outro, serás de outro como antes dos meus beijos”.
Eu prefiro ao lirismo a observação exata
o problema de língua que você me apresenta e que não consigo resolver te escreverei.
A Estação Final um livro aberto preguiçosamente em que as frases ondulam
como se meus olhos fossem um lugar para turistas desacostumados a esses inconvenientes,
nada que se assemelhe a uma mancha gloriosa,
já disse isso, de vez em quando, uma observação estúpida:
pedrinhas que se desprendem desta jazida humana,
incongruente, com a saudação de Ho Chi Min
transmitido pelos alto-falantes de educadoras
daquelas que não deixam as crianças sozinhas a qualquer hora da noite,
e ainda assim você dorme com tranquilidade
capaz de todos os lemas, mas com ressalvas ao bom humor
talvez a chave para tudo isso
um primeiro verso que ponha o poema em movimento como por obra de magia.


MARKET PLACE

Velas imensas para sempre acesas,
fontes de pedra, torres desta cidade
em que, para sempre, estou de passagem
como a própria morte: poeta e estrangeiro;
maravilhoso navio de pedra em que espreitam
os reis e as gárgulas minha sombria existência.
Os velhos tecelões da Europa todos juntos
bebem, cantam e dançam só para eles mesmos.
A noite unicamente, não muda de lugar,
no navio sabem os vigias noturnos
de rostos mutilados. Nem a pedra escapa
-igual em todos os lugares- à passagem da noite.


A MUSIQUINHA DAS POBRES ESFERAS

Pode ser uma questão de ir tocando
a musiquinha das pobres esferas.
Não me agrada essa Alquimia do Verbo,
poesia, voltemos à terra.
Aqui em Paris se vive de silêncio
o que você diz claro é coisa morta.
Bem, se fala por falar, “ao divino”,
mal se não cruza todas as fronteiras.

Digam, afinal, o que querem:
nas profundezas da ignorância
soa uma musiquinha verdadeira;
seus auditores foram em Babel
aqueles que escaparam da confusão das línguas,
pessoas inofensivas dos andares inferiores
com um pouco de tudo na cabeça;
e o poeta mais louco que sagrado
mas com uma loucura com sensatez
capaz de dar corda à alegria,
capaz de dar corda à tristeza.

Não se dirige a ninguém o coração
mas quem fala sozinha é a cabeça;
não se fala sobre a vida de um púlpito
nem se faz poesia em bibliotecas.

Depois de tudo, por que nos ler?
A musiquinha das pobres esferas
soa por onde sopra o vento amargo
que nos devolve, pouco a pouco, à terra,
o mesmo que nos colocou um dia de pé
mas bem ao alcance da cova.
E em nenhum caso no topo do coro,
Bizâncio foi: não há como voltar atrás.

Pode ser algo para se pensar
para ouvir a musiquinha eterna.

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