Nazaré em Tempos de Pandemia e o Único Homem que Passou a Usar Máscara – um Conto de Márcia Mura

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Sou Márcia Mura, vivo às margens do rio Madeira tecendo os fios de memórias ancestrais, entre as aldeias e espaços de seringais com rodas de conversa sobre modos de ser indígena e literatura indígena, sou coordenadora do coletivo Mura de Porto Velho, atuo na retomada cultural e politica do Povo Mura na Amazônia e no movimento indígena local e nacional, faço parte do Instituto Madeira Vivo na luta contra a violação de direitos causada pelas hidrelétricas. Sou neta de Francisca, mulher da floresta que ao fazer sua passagem viajou espiritualmente de volta para o seu lugar de origem: o lago do Uruapeara. Eu sou a minha avó indígena. Contato: marcianeho@gmail,com


De repente chegaram as notícias de que a humanidade estava correndo sérios riscos, nós daqui do rio Madeira, rio ancestral Mura, ficamos preocupados, pois já passamos por tantas coisas que colocaram nossa existência em riscos, desde os tempos de nossas tataravós.

Mas dessa vez a desgraça está atingindo todo o mundo, ficamos foi desconjurando tanta mortandade lá para os lado da China e da Itália, não demorou muito chegou ao Brasil, nossa Pindorama, território ancestral, depois na Amazônia, nossa casa comum, Abya Yala.

Começamos a nos abismar por que já estava por demais as notícias de mortandade no mundo, se alastrando e chegando mais perto de nós.

Foi quando o decreto governamental de instancia estadual determinou que todos ficassem em casa por que o tal corona vírus já tinha chegado para as bandas daqui. Vixe Maria! Foi mais quem se desconjurou e se alarmou!

Começou lá por Ji Paraná, território dos parentes Gavião e Arara. Mas o vírus chegou foi na cidade industrial que já quis até ser capital! Depois chegou a Porto Velho, território de memória Mura e espaço de circulação de vários povos Indígenas. Hoje a nossa capital do velho porto, para onde todos que na cidade estavam trabalhando, estudando, passeando, correram e pegaram a primeira embarcação descendo o Rio e desembarcando em cada localidade das margens do rio Madeira.

Jovens, crianças e adultos daqui de Nazaré voltaram para seus lugares afetivos onde se sentem protegidos, mas como esse lugar não se restringe só as suas casas, mas todo o espaço/casa que envolve os igarapés, lagos, as fruteiras, os espaços de encontro, ai ficar em casa é ir tomar banho no correnteza, ir nos espaços comunitários de encontro para conversar ao ar livre, andar na casa dos parentes e conhecidos.

É bonito de ver a juventude andando em grupos fazendo algazarras, mas em tempos de pandemia isso deixou preocupação. Então, um comitê comunitário resolveu fazer uma nota de alerta! Para dizer que não é porque estamos longe da cidade que estamos livres dos riscos de contagio, por esse corona vírus e que é preciso nos cuidar e salvaguardar nossos mais velhos sabedores tradicionais, os guardiões e guardiãs de nossas memórias ancestrais.

Apesar de todas os alertas, muitos maluvidos insistem em teimar. Em toda Nazaré apenas um homem passou a usar máscara, é o nosso amigon cubano, todos os dias pela manhã passa pelo trapichão, andando em passos largos compassados de cabeça erguida com sua máscara, mochila nas costas, bota sete léguas dobradas, no seu estilo próprio, dizendo bom dia para todos e todas, perguntando como vai a família e passando uma positividade. Mas, às vezes, quando volta no final do dia, passa de cabeça baixa com o pensamento longe, parece que está viajando na imaginação para sua ilha cubana.

Certo está nosso amigo, professor cubano, em usar máscara, assim se protege e protege os outros que ele se aproxima para conversar.

Esse ainda não é o fim desse conto. Não sabemos como vai ser, mas uma coisa é certa, não é só Nazaré que está correndo riscos, mas todas as localidades tradicionais e territórios indígenas. Nossa Pindorama está mais uma vez sofrendo com as doenças vindas de fora e mais uma vez estamos em total insegurança.
A ameaça de um genocídio se concretizou, por que apesar de todos os avisos e medidas tomadas, missionários chegaram com o vírus na porta de entrada do Território Indígena Vale do Javari que chega a ser habitado por vários Povos Indígenas, com grande número de povos indígenas livres que escolheram viver sem o contato com a sociedade não indígena.

Que Namatuyky, o Deus criador, nos ajude a conscientizar esses tapuinhas e os nossos próprios parentes que o Corona Vírus não é só uma gripezinha e mesmo uma gripezinha já matou e ainda mata muito dos nossos.

1 comentário em “Nazaré em Tempos de Pandemia e o Único Homem que Passou a Usar Máscara – um Conto de Márcia Mura”

  1. Muito gostoso de ler , mais triste porque é bem assim mesmo eles vão chegando de fora e trazendo as tragedias , estão se repetindo desde o descobrimento . Mas tenhamos Fé nada o que nos acontece é para nós fazer sofrer, mas para nós fazer crescer.

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