5 Poemas de Aldo Pellegrini (Argentina, 1903-1973)

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Curadoria e tradução Floriano Martins

Na poesia de Pellegrini não há rejeição ou ruptura do idioma, da sintaxe, da palavra em si. Sua expressão tem ordenamento consciente, porém, em troca, a imagem se estabelece entre distantes e surpreendentes termos que recordam a teoria e a prática de Breton, a este respeito. Busca de harmonização de contrários e de adequação ao universal mediante o real maravilhoso.

A palavra, em sua poesia, encerra a fé e a revelação de seu poder: “Espero tudo da palavra”. “A linguagem é meu caracol privado”. “Ali oculto minha antiga marcha vertical porque perdi minha verdadeira morada. Me excede o colóquio entre o dia e a noite e de súbito não sei de que obscura estirpe os homens proviemos”… Há também consciência da limitação da palavra: “Porém nem uma só palavra decifra a condição humana”.

CARLOS MARTÍN / “Proyecciones surrealistas en la Argentina”, capítulo XXII de Hispanoamérica: mito y surrealismo. ProCultura. Bogotá. 1986.


NADA

Deslumbrado pelos ventres luminosos, vestido de negro, eternamente apoiado contra o muro das aproximações, esse monstro quase perfeito se fazia chamar homem. Por que persistir? Uma porta se abre e aparece uma blasfêmia flutuante, vagando pálida sem objetivo. Gangrena das esperanças. Sua mão se cansava de esmagar os piolhos de três cores. Os demais se entretinham fazendo comparações entre os termos injuriosos, porém o furacão insuportável a tudo arrastava. Frio selvagem. Eu não compreendo e compreendo. Quem diz isto vira a cara para não ver passar as pálpebras rígidas sob as neves intermináveis. A respiração dos supostos suicidas cai como uma chuva fina sobre os dentes postiços. As saudações sem fio unem as mãos sempre vazias. Mordam as portas até destroçar a falsa compreensão, enquanto isto sua mulher os esquecerá porque seus amantes se multiplicam, em seguida se carbonizam e finalmente ela lhes extrai a raiz cúbica. Apertando os punhos até que se degolem todos se precipitam para as portas onde o insuportável mendigo queima audazmente seus sorrisos. Um grito imediatamente destrói os mistérios de papel. A pedra se agiganta até que seja o mundo a girar desesperadamente na profundidade das pupilas do paranoide. Sobre o rosto crispado passam o sol, a noite, o grito repugnante das virgens, a morte cavalgando as axilas suadas, um adolescente que urina agarrado a uma árvore. Por trás dos molares na boca babenta, os muros gigantescos são derrubados frente ao olhar fixo da porca grávida.

De pé no umbral espera eternamente. Socorram-na. Estendam o arame sobre as falanges descarnadas para que passe o trem com estranha lentidão. Logo receberão a decepção das catástrofes sem mortos e os sobreviventes mencionarão com tristeza o infortúnio de terem sido salvos.

Porém ela, no alto da escada, me mostra seu rosto sem relevo, seu hálito sólido. No vértice da torre é um ponto negro que se lança ao vazio, mistura-se com os pássaros, com os excrementos do ar, dissolve-se na atmosfera, precipita-se sobre a língua ofegante dos cães maiúsculos, afasta-se triste com os braços caídos, pisoteando seu próprio corpo e seu próprio sangue.


A MULHER TRANSPARENTE

Tua voz era uma bebida que eu tomava silencioso
diante de olhares assombrados
um pássaro de luz
saiu de teu corpo transparente
pássaro de luz
instante que volteia
em uma vertiginosa velocidade
atravessando ruas e ruas
perseguem teu corpo que foge
quando poderás afastar a turba enlouquecida?
Desamparada
ao cair te destroçaste toda
os restos de teu corpo se arrastam por todos os sítios do mundo
ah um dia renascerás tu
a transparente
única, inconfundível
levemente inclinada, jamais caída
rodeada de impenetrável silêncio
avançando teu frágil pé entre a vacilante monotonia
ah um dia renascerá teu riso
teu riso de pássaro transparente
teu riso ferido.


ESTANDARTE DE TORMENTAS

A Enrique Molina

Quem despertou teus monstros e teus selvagens cavalos na chuva?
o céu está repleto de olhos perdidos
a água da vida goteja das torneiras
pássaros de quietude bicam a tarde
nessa calma onde vão teus monstros?
eu os vi caminhar sobre os ventres desnudos com saltos de plumas
saltos suaves e aéreos de mercúrios incandescentes
eu os vi caminhar com saltos de aço sobre as palavras mortas
e logo se perderam na névoa das horas.

Por que amo tua voz fruto de tumultos, embriaguez de cozinhas e templos,
de coxas habitadas por tartarugas,
de garrafas suspensas nas naves das bocas?
descobriste a lente das metamorfoses
que dá furor de neve às mãos caídas
e virtude de cântaro à carne aletargada
descobriste a árvore que faz nascer os seios
as noites que cavalgam
descobriste que a solidão é um canto.

Um dia nos encontramos nesses abismos de ar irrespirável
onde ambos inventamos a ressurreição da linguagem
tu fazias surgir vampiros das pedras da voz
eu buscava cristais viventes no coração dos significados
como se entendem os homens com cadáveres de palavras?
hoje a poesia é um imenso cemitério
tu e eu quisemos que as palavras transportem vida
a vida maravilhosa que nos inunda
por isto açoitaste a linguagem para depois enchê-la de vinho
do vinho deslumbrante que embriaga os que escutam
eu ocultei nas entranhas do verbo um diamante que corta as almas.

Palavra e vida, incêndio e sonho se mesclam
recolhamos a colheita de lábios
abandonemos o dente esquecido na mordida do amor
para buscar a calma que predica a desordem.

Marchemos até esse mundo de loucura lúcida
sedento de nosso veneno deslumbrante
vinho da linguagem que embriaga os que escutam
vinho das fogueiras
para acender a luz das tormentas.


TROFÉUS

Cada olhar é uma árvore que navega em um rio
uma árvore que cresce em palavras líquidas até que transborde o céu adormecido
palavras nascidas do assombro com mão de desejo que abre a porta que conduz à privação do canto
em um espaço infatigável
semeado de pedras mas que possui uma particular espécie de divindade
ante a qual os adoradores resplandecentes de orgulho ofertam a maligna substância de seus sentidos esgotados
em um espaço infatigável
com a hostilidade do órgão da surpresa e a submissa devoção do cansaço

Tão enorme é a distância que nos separa
tão imensa a irritação que os homens cedem seu sonho fortalecendo a covardia com as necessidades elementares da vida
atentos à sua salvação enquanto caminham penosamente através da distância que nos separa
e reúnem inumeráveis troféus obtidos nas campanhas empreendidas para encurralar a inocência
e impudicamente deslocam o mar e a terra em uma façanha discretamente vergonhosa
sem intenção de separar o bem do mal mas sim com o objetivo de criar largos álveos de sofrimento
com essa sabedoria desdenhosa percorrida por trens que partiram da hora do gênesis
e repetidamente detêm-se na desordem sem que tudo ao longo dos séculos
possa alcançar essa estação de chegada onde aguardam esplêndidas senhoras enluvadas que tentam conter mediante indescritíveis esforços de pudor uma fome sexual que as devora interiormente
mas que exteriormente lhes dá uma serena elegância de serpentes afetadas pelo calor.


RECONSTRUÇÃO DE UMA IMAGEM

Desde um banquinho de sonho, desde uma vitrina, em outro tempo buscava. O que buscava? O que se chama de outro tempo? Há dias em que é impossível encontrar o presente. Então buscava em outro tempo. O que buscava? Algo assim como um objeto. Buscava algo que fosse objeto. E por isso tateava no vazio. Foi assim que tropecei com a imagem.

A imagem não é um objeto. É talvez uma forma que vê.

A chuva é uma forma. A chuva. Uma forma que arrasa a tristeza. Estava a chuva. Algo que transcorria sem consequência. Não, não; houve consequência. Estendi a mão e recebeste a chuva.

E inesperadamente
estavas comigo.

Então a angústia subiu com a lentidão de um oceano. Tu estavas longe de mim. Eu estava longe de ti. Porém tua mão encrespou-se na minha. Ausência do tempo. Nada começava nem seguia. O silêncio assobiava.

Estavas nua em meio ao silêncio. Nua de toda relação. Não estavas nem perto nem longe. Simplesmente estavas nua.

Nada perguntavas, porém olhavas de uma maneira estranha. Um vento breve agitou teus cabelos. Eu não podia me aproximar. Tu não podias te aproximar.

Um dia te abandonaste ao teu próprio aniquilamento. Tomaste a chave e abriste a porta desse incomparável prazer de deter-se. Frente a tudo o que foge, ficas. Tudo foge e ficas nessa coisa nova que é a morte. Nela de repente ficas e ninguém pode te socorrer. Ficas fora do tempo e todos se afastam. Estás sozinha, com absolutamente nada. Não como a altiva solidão dos que vivem. Absolutamente só porque até o orgulho te abandonou. Tuas mãos estão, porém não tens a companhia de tuas mãos, nem de teus pés. Teu sorriso também te abandonou. Já não estás perto ou distante. Simplesmente não estás.

Nesse momento em que te vi absolutamente sozinha eu também te abandonei. Senti crescer meu egoísmo como um sol acariciante. A esplêndida beleza do egoísmo. Abandonei-te e me senti só. Porém conservava minha vida. Conservava meu orgulho. E meu egoísmo. Conservava meu sorriso e minhas mãos. Conservava minhas mãos ávidas que buscavam na luz outra imagem. E acima de tudo conservava meu orgulho.

Ficaste ali e ainda não sei quem eras nem como eras.

E não me importa.

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