Curadoria de Floriano Martins
Tradução de Elys Regina Zils
Paura Rodríguez Leytón (La Paz, 1973). Poeta e jornalista. Publicou Del Árbol y la arcilla azul azul (Argentina, 1989); Ritos de viaje (La Paz, 2004; Caracas, 2007, ed. digital); Pez de Piedra (La Paz, 2007), Pequeñas mudanzas (Colômbia, 2017) e Instante claro (México, 2018).
Uma das funções da poesia é questionar o mundo sem pretender encontrar uma resposta. Ou seja, apontar o mistério, o vazio, a incerteza. Pequeñas mudanzas, de Paura Rodríguez Leytón, traduz uma busca que, embora parta de uma voz, a dela, a do indivíduo, nos remete a uma mais absoluta e definitiva, a da própria espécie. Sua cadeia de perguntas –explícitas e implícitas– aponta, então, para o puramente existencial, para a origem, para o tempo de que somos feitos, para o que há de animal e também de transcendente em nós. Sua matéria é, portanto, nebulosa, inapreensível, o que confere à sua palavra essa escuridão expressiva própria de tanta boa poesia. Isso significa que chegamos às suas profundezas guiados pela intuição da linguagem e não por qualquer lógica gramatical, já que Pequeñas mudanzas está construído sobre a metáfora, única forma possível de escapar do silêncio que implicaria desistir da busca.
“Que ossos constroem nossa sombra?”, pergunta a voz poética. E outro verso parece responder: “Minha amnésia não encontra descanso”. Palavras que dão sentido à epígrafe de Giovanni Quessep: Nostalgia é viver sem lembrar/de que palavra fomos inventados. Como “um animal ferido”, o homem cava e cobre suas “pequenas tocas para aninhar nossos medos”, nascendo todas as manhãs, vivendo pequenas mortes, cada um falando de “sua vidinha”, cada um se construindo como pela primeira vez no tempo, o qual “talvez não exista fora do corpo que avança no rio”. E é nisso que consiste o caminho, em que tateamos, apoiados no esquecimento, pela palavra, que mal toca o ser das coisas, como “anjos desalados” que não se lembram do céu, se é que algum dia o houve.
“De um antigo mar / temos o sal/ que vem escrever os nomes.” Com esse sal Paura Rodríguez escreveu estes versos, deixando-nos um gosto áspero no paladar e abismando-nos na nossa pequenez, na nossa ferida, algo que sabemos perdido e cuja vontade de procurar talvez nos justifique.
Piedad Bonnett / Fragmento do prólogo do livro Pequeñas mudanzas (2017)
PEQUENAS MUDANÇAS
Será o esquecimento perpétuo
aquele que nos leva pela mão,
tateando os abismos?
Morar este pequeno espaço
é ser um emaranhado de almas.
Cavar e cobrir
a cavidade
com a mesma sede
nos faz brilhar com a aura de um animal ferido.
As breves
mortes
de cada dia
marcam
a distância
entre nós
e nós.
Como cavar em silêncio a atmosfera?
Como refazer essas pequenas mudanças?
Esta caverna
insondável
será a amnésia,
o engano
de habitar memórias
de remota origem.
IMPRESSIONANTE SONHO
O frio do nada não espanta as formigas
que continuam alimentando o ritmo de sua toca
como o húmus que devolve a vida eterna
em um longo sonho vegetal.
O cru no cheiro da areia,
não nos assusta:
esse soberbo mar
ruge
eriçado
e azul.
Pensar
é uma tarefa exorbitante:
uma minúcia da linguagem que acontece lentamente
e o tempo
talvez
não existe
fora
do corpo
que avança no rio
ATRIBUO-TE A TORRENTE DO MEU SANGUE
São as palavras
com sua urgência de vento
as que arremetem contra este corpo
coberto de memórias vegetais.
A alma tenta permanecer ilesa,
mas há um furacão que sacode
até o canto mais escuro dos sapatos.
As órbitas do tempo nos olham absortas,
grávidas de chuva pronta para nos desfolhar-nos com carícias maternais.
Será um sempiterno vir e cair de horas.
Mas não há remédio para este relógio que canta a insônia.
Quão urgida está a manhã com suas flores suaves e seu pão fresco!
Qual é a profundidade?:
nossa pele envelhecida
nossos papéis perdidos e desordenados,
nosso acidentado percorrido pelo dia.
As portas que você cruza são como bocas estranhas ao seu próprio corpo.
No velho telhado não há nada além de murmúrios:
o murmulhar de pombas lânguidas
atingidas por um sino com toques
geométricos.
Há apenas lábios mordidos por uma erosão da linguagem.
O profundo é esta voz cicatrizada e o umbigo estranho do olhar do ciclope.