Curadoria de Elys Regina Zils
Tradução de Floriano Martins
María Mercedes Carranza nasceu em Bogotá em 1945, mesma cidade onde se suicidou em 2003. Desde muito jovem esteve rodeada de poesia porque o seu pai, o poeta Eduardo Carranza, conheceu os seus amigos (entre os quais Dámaso Alonso e Pablo Neruda) em sua sala para cantar versos à vida.
Durante a maior parte de sua infância, Carranza morou na Espanha, retornando definitivamente à Colômbia aos treze anos. Estudou filosofia e literatura e publicou seu primeiro livro de poemas, Vainas y otros poemas , em 1972. Carranza concentrou-se em sua busca poética em encontrar a palavra exata para nomear cada coisa e seus sentimentos mais íntimos, pois pensava que a Palavra “se tornou /uma mentirosa, uma puta, teimosa” e que “é hora/ dela tirar a maquiagem e começar a nomear não o que é/ de Deus nem o que é/ de César, mas o que é nosso/ dia após dia…”Assim, como diz o poeta Darío Jaramillo, a poesia de María Mercedes Carranza é “desprovida de quaisquer subterfúgios, de qualquer brilho dissimulador, de todas as mentiras, voluntárias ou não”.
Durante 16 anos, Carranza foi diretor da Casa de poesia Silva . Por meio dele, ela se dedicou a ensinar aos colombianos que “as palavras podem substituir as balas”. Ela fez muito para promover a poesia do grande poeta colombiano do século XIX, José Assunção Silva; e criou eventos de massa para que o povo colombiano pudesse receber “grandes doses de poesia”, porque segundo ela “a poesia ajuda a viver”. Além disso, foi membro da Assembleia Nacional Constituinte que elaborou a nova Constituição da Colômbia em 1991.
Seu último livro, El canto de las moscas (versão de los acontecimientos), consiste em uma série lírica e sem adornos de poemas curtos voltados para a violência sofrida pelo país. O poeta Mario Rivero diz que este livro se tornou “um doloroso despacho de guerra” onde o poeta consegue “construir sabiamente a expressão essencial dos factos essenciais (…) da selvageria quotidiana numa comunidade sitiada pela morte”.
MELIBEA GARAVITO
LÁ EU QUERO TE VER
É assim, na aventura da sopa
e um pouco mais ou um pouco menos
onde todos os dias tiras a medida da morte.
Que o vizinho morra é lógico;
após algumas lágrimas também é natural
que morra aquela amiga
e um por um todos aqueles que estão contigo.
Mas como entender que o além é
também para ti ainda que estejas aqui?
Ao chegar aqui deixas de compreender tudo,
tanto que o mistério da santíssimo
trindade é uma piada; uma espécie
de parede negra e nevoenta, para melhor
exatidão, golpeia a tua testa e não
te deixa passar; procuras saídas como nos
sonhos, atracadas, aos tropeços
e tão sonolenta. Finalmente
deixas para outro dia.
BRINCANDO ÀS ESCONDIDAS
No começo vão chorar muito.
Haverá novena, missas cantadas
com diáconos e quatro sacerdotes.
O luto vai enfeitar os parentes
que em meio às lágrimas verão sua vida como uma façanha.
Ela será uma grande dama, esposa incomparável,
querida amiga, um poço de graça,
virtudes e dons.
O vazio que deixará na sociedade
não será preenchido, por mais que se tente.
Serão preservadas como relíquias
mechas de cabelo.
E haverá até mãos
que sentem falta de outras mãos.
Com o passar dos anos será da avó
a vez de passar a um ossuário
e depois a foto em qualquer canto da casa
que ninguém, senão de longe, sabe
quem retrata. Finalmente nada.
PERNAS PARA CIMA COM A VIDA
Morrerei mortal,
Ou seja, tendo passado
por este mundo
sem quebrá-lo ou manchá-lo.
Não inventei nenhum vício,
mas desfrutei de todas as virtudes:
aluguei minha alma
para a hipocrisia: trafiquei
com as palavras,
os gestos e o silêncio;
cedi à mentira:
esperei pela esperança,
amei o amor,
e até um dia eu pronunciei
a palavra Pátria;
aceitei o engano:
fui mãe, cidadã,
filha de família, amiga,
companheira, amante.
Acreditei na verdade:
dois mais dois são quatro,
Maria Mercedes deve nascer,
crescer, reproduzir e morrer
e eis onde estou.
Eu sou um modelo do século XX.
E quando o medo chega
vou assistir televisão
para conversar com minhas mentiras.
QUERO DANÇAR COM ULISSES
Feliz aquele que como Ulisses
fez uma bela viagem.
JOACHIM DU BELLAY
Quero convidar Ulisses para dançar,
quero beber com ele e que me conte
de que cor eram os olhos do jovem Aquiles.
Quero que me cante o canto das sereias
e me diga sobre suas noites insones
sobre as águas do Mediterrâneo.
Quero saber da sua cumplicidade com Circe
na ilha de Ea e suas estranhas
cerimônias e encantamentos.
Quero que Ulisses faça amor comigo
e na cama me conte
como eram os vestidos de Helena?
e se Paris foi como Rubens o pintou.
Quero saber o que ele viu na terra dos Comedores de Lótus,
de que cor eram as montanhas da Tessália.
Quero que me conte por que voltou para Ítaca.
ERA UMA VEZ UMA MULHER PRESA A UMA VIRTUDE
Não tinha vontade de nada,
apenas de viver.
JUAN RULFO
Jaz para sempre
pisoteada,
coberta de vergonha,
morta
e convertida em nada,
a minha última virtude.
Agora eu sou uma mulher
de vida alegre,
uma perdida: cumpro
com todos os meus deveres,
sou poço
de bondade, respiro
santidade
por todos os poros.
Eu interrompo a luz,
fecho
a boca do vento,
apago as montanhas,
risco o sol,
eu como zero
e silencio o quê.
Eu elimino a vida.